UMA PIADA SEM GRAÇA

 

É verdade, o Ceará é terra de gente bem humorada. 

E, devido a nomes de peso como Chico Anysio e Tom Cavalcante, o estado se tornou conhecido em todo o Brasil como fonte de talentos na arte do riso. Embora a ideia de que existe um Ceará moleque, gaiato, como incontestável identidade do povo alencarino, seja controversa, nossa história é pontuada por inúmeros casos verídicos – apesar de quase inacreditáveis – que ratificam essa ideia.  Meu estado cultiva a memória de vultos populares como o Bode Ioiô, que foi eleito, em 1922, vereador da cidade. Também Seu Lunga, de Juazeiro do Norte, conhecido por suas respostas cretinas a perguntas simplórias. Isto, sem falar da vaia ao sol dada pelos fortalezenses, em 30 de janeiro de 1942, depois de dois dias de chuvas intensas. 

Os cearenses – principalmente do sexo masculino, quando a fim de apenas brincar ou de realmente destratar alguém – utilizam-se de uma alcunha que, em nossa cultura, talvez seja uma das mais ofensivas. Cearenses – aqueles menos abastados, em sua maioria – odeiam ser chamados de “liso”. 

Liso é aquele sujeito que vive com sérias dificuldades financeiras, cujo dinheiro mal supre as necessidades mais básicas É alguém que não pode se dar ao luxo de possuir bens de consumo caros e da moda. É um fuleragem, um cu cagado

O povo cearense, em sua maioria, é pobre, portanto, somos quase todos lisos. Reconhecemos a nossa pobreza e, a única maneira de lidarmos com ela, é atribuindo-a ao outro. Pobre, é outro. Liso, é outro. No Ceará, a pobreza deixou de ser uma condição social e transformou-se em um estigma vergonhoso. Sendo assim, o cearense tem plena consciência de sua pobreza, mas não a assume, pois admiti-la é permitir-se ao escárnio. 

Então, assim, seguem meus conterrâneos: famintos, doentes, analfabetos, sem reclamar, rindo de tudo, fazendo troça. É como se nossa miséria cotidiana não fosse real, como se nossas mazelas apenas existissem em uma piada de mau gosto. 

Um povo que não assume sua própria condição, jamais conseguirá se livrar dela, por mais dura e insustentável que ela seja, pois, reconhecê-la, seria a única via de acesso para criticá-la e transformá-la. 

Enquanto nos envergonharmos de nossa condição social, continuaremos zombando de nós mesmos, ao passo que a elite que nos oprime continuará chacoalhando a pança adiposa, às gargalhadas. 

Somos quase todos lisos e isso não tem graça. Mas também não é motivo de vergonha. Admitir nossa liseira, parar de rir dela ou de enxergá-la apenas no outro, talvez nos transforme em um povo mais sério, menos abestado

Já passou da hora deste Ceará moleque crescer. 

 

15/05/2014, quinta-feira

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