UM HOMEM INÚTIL

 

Não! Independente do uso, não tenho aptidão para atender às demandas do mercado. Sou um homem inútil. Eu não sirvo para a preguiça contemporânea que rejeita a diversidade das pessoas e das ideias, que teme e impugna revoluções. Nossa modernidade anseia pelo efêmero e instantâneo, o que me torna um fardo. Eu não sei emagrecer, aprender ou amar se não for por uma causa coletiva. Minha inutilidade me priva de soluções imediatas e de receitas mágicas. E ser inútil me exclui do convívio com os seres humanos práticos que reverberam suas gentilezas ególatras como quem salva a vida de um inocente. O aplauso! A glória!

 

Eu, paspalho baldado, sempre demoro a encontrar paisagens que me agradem. Padeço de vergonha por não ser igual àqueles que sorriem para mil selfies e compartilham nas redes sociais suas vidas oportunas.

 

Ah! Que aborrecido é não ser um destes mártires que tentam salvar com orações e punhados de sal as águas apodrecidas pela sujeira do progresso! Grandes são os pais de família que poupam do estupro mulheres que consideram feias! Notáveis são os homens que reorganizam a educação de um estado fechando escolas, ameaçando professores e surrando estudantes. São todos eles essenciais, engrenagens de uma máquina maior que sustenta este mundo de coisas e pessoas colocadas em seus devidos lugares.

 

Sou um bosta. Um nada. Não presto nem sequer para promover cultura. Muito provavelmente eu não saberia vender canções ruins. Também não teria coragem de convencer as pessoas de que meu barulhinho óbvio, na verdade, trata-se de uma expressão sincera da música popular brasileira. Eu não tenho talento para escrever sobre vampiros vegetarianos que brilham ou sobre quartos vermelhos da dor. Não saberia repetir fórmulas exauridas com o simples propósito de entreter mentes acomodadas enquanto enriqueço editoras mercantilistas. Meus cadernos só abrigam histórias que quase ninguém quer ler. Uns rabiscos cansativos, enfadonhos, sem a leveza e a fácil digestão naturais nos livros de autoajuda que comercializam modelos de vida mofinos e sintéticos, que entopem as pessoas de soníferos. E todos dormem, e todos sonham, e tudo se faz maravilhoso!

 

 Reconheço. Sou perfeitamente desnecessário para a manutenção desta vida que só vive à custa da morte cotidiana de tantas outras pessoas também supérfluas. Autômatos só têm alguma serventia enquanto máquinas servis e de fácil operação. Dizem alguns que o advento da inteligência artificial consciente (a singularidade tecnológica) confere autêntica ameaça ao futuro da humanidade. Parece-me que o mesmo acontece quando homens inúteis começam a ansiar por autonomia e fazer discursos para os demais escusados. Homens inúteis não foram projetados pelo sistema para pensar. Tornam-se tilts ameaçadoras quando o fazem. Não há aplicação prática para discernimento e racionalidade em um mundo escoltado por paixões aleijadas e guiado pelos olhos da fé cega.

 

Sou um traste, um daqueles utensílios de cozinha que ninguém quer tirar das caixas por não saber como usá-lo. Tornei-me inútil por que a maioria das pessoas prefere me reter no armário ou me atirar de vez no lixo a aceitar que minha existência tem seu independente emprego. A humanidade acostumou-se à praticidade de coisas previsíveis e ninguém quer perder tempo com manuais de instrução. Também não permitem que o objeto-homem-inútil explique-se a si mesmo. Preferem tratar o que não entendem como um isso-excesso.

 

Gostaria de fazer mais pela sociedade que me suporta, apesar de minha falta de préstimo. Não sei bater em mulheres e muito menos atirar em adolescentes. Não sei rezar para que gays, lésbicas, travestis e transexuais deixem de ser quem são. Também não sei negar meu respeito e amizade a uma pessoa por ela ser pobre, negra, quilombola, indígena, gorda ou ateia. Sou um desses homenzinhos que se enfileiram em marchinhas e reclamam mimimimente dos estuprinhos, das execuçõezinhas, das pequenas e quase imperceptíveis distorções sociais de nosso meio que, de tanto dizer-se igualitário, acredita ser. Mas nós, os completos inúteis, sabemos que isso não é verdade.

 

Queria destruir terreiros de candomblé, odiar aqueles que pensam diferente de mim, espancar o torcedor do time rival, lavar minha honra com sangue, desejar a implementação da pena de morte enquanto convoco as pessoas pelo whatsapp para que caminhemos pela vida, pela paz. Mas não dá. Não posso. Não sirvo pra isso.

 

Fernando era doido. Eu sou inútil. Com todo direito a sê-lo.

 

Emerson Braga

 

04/12/2015, sexta-feira

 

Comments: 1
  • #1

    Verusks (Saturday, 05 December 2015 05:58)

    Que texto foda!