STATUS QUO ANTE BELLUM

O termo status quo ante bellum é uma expressão em Latim que significa literalmente, "o estado em que as coisas estavam antes da guerra". A guerra dos LGBT por liberdade e equidade de direitos começou há muito tempo. Só não podemos permitir que as coisas voltem a ser como eram antes de a deflagrarmos.

 

No último dia 29 de junho de 2018, um soldado da PM pediu afastamento de suas funções após a divulgação em redes sociais de um vídeo em que ele aparece fardado dando um selinho em outro homem. A cena foi registrada por uma câmera de celular, sem o conhecimento do soldado, dentro de um vagão da Linha 3–Vermelha do Metrô de São Paulo, e viralizou na internet feito os nudes da Cleo Pires (Opa! Agora é sem o Pires, né?).

 

Leandro Prior, 27 anos, é policial desde 2014. Diferentemente do personagem central de O beijo no asfalto, peça teatral do jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, o soldado resolveu assumir publicamente seu amor por outro homem não só para o alto escalão da PM, mas para todas as telas de tevê, smartphones e PC’s do país.

 

Apenas no dia 11 de julho, tomei conhecimento do drama de Leandro ― que, desde o beijo, passou a ser perseguido e ameaçado nas redes sociais, inclusive por muitos colegas de farda. Para entender o que acontecia, resolvi assistir pelo YouTube ao programa Conexão Repórter, de Roberto Cabrini, que foi ao ar no dia 9 de julho, no qual Leandro apresentou sua versão dos fatos e teve a oportunidade de defender-se das muitas acusações que lhe imputavam.

 

Após quase 1 hora de vídeo, não vi nada de novo no reino das Dandaras assassinadas. O velho e truculento preconceito mais uma vez se manifestava em uma de suas muitas facetas. A diferença é que, desta vez, o caso envolvia um agente de segurança do Estado vinculado a uma instituição historicamente conhecida por sua cultura machista e por sua intolerância com as diferenças. Da mesma forma que a farda homogeneíza soldados por fora, espera-se deles um comportamento de rebanho, ou seja, que também se tornem semelhantes por dentro. Todos os dias, autômatos despidos de personalidade são perdoados quando atiram para matar em alguém desarmado. Mas Leandro e seu beijo gay no metrô parecem não encontrar paz e nem perdão. No sistema da PM de São Paulo, Leandro é um bug, uma tilt. E o que o torna um problema operacional não é o fato de ser gay (as Forças Armadas sabem que seus contingentes não são formados exclusivamente por pessoas cisgênero e heterossexuais), mas por ter tornado pública sua orientação sexual.

 

Ainda ontem, debatendo com meu irmão mais velho ― outra vítima recente das caças às bruxas que, vira e mexe, transformam a internet em patíbulo inquisitório ―, nos perguntamos: O que caras como Leandro Prior querem na PM? Aliás, o que fazem em qualquer instituição militar? O que desejam das igrejas? Por que frequentam estádios de futebol? Enfim, por que insistem em ocupar espaços extremamente tóxicos para pessoas LGBT, lugares conhecidos pelo ambiente preconceituoso e, muitas vezes, violento para aqueles que não entram no esquema papai-e-mamãe

 

Meu irmão subiu para seu quarto e me deixou sozinho no sofá da sala com esses questionamentos. Apenas depois de muito matutar, chegay a uma conclusão: Quem frequenta, de cabeça erguida e posta pra fora do armário, cenários conhecidos por seus regramentos homofóbicos, trava uma batalha muito maior do que aquela que, em grupo, lutamos durante as paradas da diversidade. Enquanto somos milhares caminhando sobre o asfalto, caras como Leandro Prior enfrentam uma guerra inteira sozinhos. Pessoas como ele fazem com que o futuro se desenhe de outra forma, sacodem o mundo. Sua insistência em permanecer numa instituição que o hostiliza não é uma incoerência, mas um gesto revolucionário. Leandro Prior é nossa Rosa Parks se recusando a ceder lugar no ônibus a um homem branco e racista, e isso é lindo!

 

Portanto, colegas, deixemos as críticas para os inimigos de Leandro, pois eles também são nossos inimigos. Chamá-lo de “bicha machuda” e supor que ele muito provavelmente seja homofóbico com as afeminadas ― mesmo que não haja nenhum registro ou queixa de terceiros neste sentido ― é desvirtuar algo que, de certa forma, está sendo feito por todos nós. Leandro tornou-se maior do que a sede de sangue daqueles que nos querem mortos a pedradas. Precisamos torná-lo ainda mais colossal, pois fazê-lo ser visto é também nos tirar da invisibilidade.

 

Talvez por meu ranço com as Forças Armadas, com a Igreja e com o machismo virulento presente nos estádios de futebol, eu tenha deixado por muito tempo de perceber o quanto é importante a insistência de nossos manos e manas que, por razões pessoais ou culturais, desejam ocupar esses espaços. A partir de agora, terei não apenas mais respeito por eles, também garantirei meu apoio incondicional. Talvez assim, eu não me sinta tão omisso quando um beijo de amor virar de cabeça para baixo a vida de outro LGBT neste país.

 

Emerson Braga

 

13/07/2018, sexta-feira

Comments: 4
  • #4

    Ceu (Monday, 16 July 2018 20:56)

    Tinha ouvido falar no caso, mas não sabia detalhes. Aí vem você trazendo não só a história... mas também a reflexão em pontos certeiros... A questão não é o que um gay está fazendo nessa instituição... mas é (e não podemos perder isso de vista) o que as instituições fazem com os gays, as lésbicas, as pessoas trans, as pessoas negras, pobres, etc... é nisso que precisamos parar para refletir... Essa instituição é para brasileiros, se o rapaz é brasileiro e deseja estar lá, é direito dele estar lá... E isso também deve ser assegurado a ele! Ser tirado da instituição por causa de sua vida afetiva, só demonstra o preconceito institucionalizado e o longo caminho que ainda é necessário percorrer para que todos os espaços sociais sejam de TODA a sociedade, considerando a DIVERSIDADE que a constitui! Leitura pra pensar junto, como sempre, e como gosto tanto!

  • #3

    Dayse (Monday, 16 July 2018 19:34)

    Sem palavras! Senti-me representada!

  • #2

    Rosa v.a.said (Friday, 13 July 2018 18:16)

    Gostei demais do seu texto/desabafo Emerson.

  • #1

    Marco A (Friday, 13 July 2018 09:39)

    LGBTIs devem transitar de cabeça erguida em todos; TODOS os seguimentos sociais. Basta de preconceitos, especialmente de preconceitos que partem dos próprios gays. O que mais me desanima e perceber repulsas entre travestis e machudos bombados, entre lésbicas e bichas, entre ursos e ladies. Não é fácil conviver e tentar combater o preconceito dos heteros homofóbicos, poupemos nossas forças para estes. Como de hábito, preciosa, leitura.