OS FLAGELADOS DO AÇUDE PATU

30 de Novembro de 1981

Fortaleza, Ceará

        

         Mio Ragazzino,

                    

                   Recebi com festa e regozijo tua afável carta. Desfrutei com enorme prazer a notícia de que eu não precisarei mais viajar à Trento sempre que meu coração ansiar pela ternura de teus olhos e pela sabedoria de tuas palavras benfazejas. Por que me disseste somente agora que assumiste a paróquia de Nossa Senhora das Dores, em Senador Pompeu? Tua surpresa quase me custou a saúde cardíaca, tamanha a emoção que se apoderou de meu peito quando tomei ciência de que tua bênção e teu abraço estão agora bem mais próximos de minhas faltas com Deus.

 

         Padre Albino Donatti, meu santo amigo, encontro-me neste exato momento dentre teus dedos e à vista de teus olhos transformada nestas palavras que se põem diante de ti em respeitosos afeto e admiração não apenas a fim de felicitar-te por essa nova etapa de tua iluminada vida, mas para fazer-te um pedido. A providência divina levou-te à Senador Pompeu para que, enfim, o destino se desengodasse e a verdadeira razão de termos nos conhecido na Itália finalmente viesse à superfície de nossas existências.

 

         Assumiste a paróquia de uma cidade bela e carismática, povoada por pessoas agradáveis e dotadas de almas pacatas, mas que tem um passado que precisa ser remediado. Graças à tua carta, a história que há décadas tento esquecer, ressurgiu como um espinho de mandacaru a ferir-me o pé descalço. Lembra-te quando me deste de presente o livro Um dia na Vida de Ivan Denisovich, de Alexander Soljenítsin? Aquele que falava dos campos de trabalho forçado criados para conter criminosos, presos políticos e homens livres que se opusessem ao regime da União Soviética, os famigerados gulags? Pois bem, meu grande amigo. Nada naquele livro me causou surpresa ou espanto, pois também fui vítima de um mal semelhante em desumanidade e sofrimento, um terror que se estabeleceu não só em Senador Pompeu, como também em Ipu, Quixeramobim, Cariús, Crato e Fortaleza. O senhor está empossado em uma cidade que possui uma terrível mácula e cabe a mim descortinar a verdade enterrada com os mortos antes que eu revele em súplicas minha solicitação.    

 

         A vida permitiu que eu nascesse após a seca de 1915, mas não tardou a apresentar-me outra tão ou mais cruel que aquela retratada pela obra de Rachel de Queiroz. Durante a seca de 1932 ― época em que eu contava 19 anos de idade ― milhares de sertanejos, retirantes, seguiram para as grandes cidades do Ceará em busca de trabalho e alimento. Temendo a intensa invasão de flagelados famintos e doentes e sem trabalho em suas praças viçosas e em seu rico comércio, a elite cearense desenvolveu um método higienista bestial e desumano, que atraía os retirantes com promessas de trabalho, alojamento, alimentação e serviços de saúde, mas tudo que encontramos após uma extenuante caminhada de dezesseis léguas foi uma sórdida prisão onde imperavam a fome e a insalubridade. Confinaram-nos naquele curral do governador Roberto Carneiro de Mendonça como animais, onde quem entrava não tinha mais o direito de sair, sob ameaça de morte. Vestiram-nos com sacos de farinha e trocaram nossos nomes por senhas numéricas, fomos humilhados, torturados e massacrados a fim de que se evitasse que causássemos qualquer mal-estar àqueles que nos negaram ajuda e se julgavam no direito de viver mais que qualquer um de nós: cativos em uma pocilga de miséria fraterna.

 

         Meu irmãozinho morreu tísico, faminto, em meus braços, pois minha mãe havia perdido a sanidade e não possuía meios de cuidar dos próprios filhos. Andava nua pelo campo, louca, a gritar citações bíblicas sobre o inferno e o fim do mundo. Meu pai, pobrezinho, trabalhou sem ser remunerado e à exaustão na barragem do Açude Patu, que se edificou sob a mira das armas dos soldados que constrangiam os trabalhadores a extrapolarem os limites de suas condições físicas. Meu pai morreu com um tiro no peito por ter se negado a trabalhar em um dia em que a ração de farinha que nos mantinha vivos não foi fornecida. Fiquei sozinha no meio de toda aquela insanidade, Albino. A solidão acabou por endurecer-me, tornei-me indiferente ao choro das crianças, ao desespero das mulheres e aos homens que caíam mortos de tanto trabalhar ou fuzilados por se rebelarem. Roubei comida de famintos, neguei água, disputei osso com cachorro, tornei-me egoísta e ruim, tamanha a desgraça que se abateu sobre todos nós. E quanto mais nos vilipendiávamos, maior crescia a convicção em comerciantes e fazendeiros de que éramos nós os animais, e não eles. 

 

         Verifique os livros de óbito de sua igreja, Donatti. Lá estão escritos com sangue os nomes de todos os desvalidos que morreram no Campo do Patu, abandonados por Deus e entregues à falta de abnegação de seu próprio povo. Procurávamos trabalho e ajuda. Encontramos a morte.

 

         Somente quando as chuvas voltaram a cair, em 1933, os campos foram desativados e os sobreviventes encaminhados de volta aos seus locais de origem. Mas nem todos retornaram. Fui adotada por uma família que havia perdido a filha adolescente, morta pelo cólera, e me levaram para viver com eles em Fortaleza, no local onde havia funcionado outro curral do governo, chamado Campo do Urubu, que posteriormente se transformou no bairro do Pirambu, um dos muitos conjuntos habitacionais construídos em cidades-dormitório para afastar os desvalidos do usufruto dos bens culturais e de lazer oferecidos por Fortaleza. Lá vivi por muitos anos, onde assisti as pessoas voltarem para suas casas abatidas pelo cansaço das semanas extenuantes de trabalho, pela distância, pelo transporte ruim. Homens e mulheres que tiveram de assistir impassíveis seus filhos se tornarem traficantes e suas filhas prostitutas, como se a terra sobre a qual vivíamos estivesse para sempre marcada pelo estigma da violência e penúria. Como o senhor sabe, hoje sou uma juíza aposentada e vivo com todo o conforto que os louros de minha profissão poderiam vir a me garantir, mas muitas famílias ainda residem no bairro do Pirambu sob o mesmo descaso e violência que açoitaram aqueles que testemunharam o terror dos campos do Urubu e do Patu.

 

         Estudei Direito a fim de um dia lutar por aqueles que, como eu, sobreviveram ao horror dos campos de concentração cearenses. Ambicionava processar o Estado que tinha a obrigação de cuidar de seu povo e abanou-o ao feroz apetite da pior das mortes. Sertanejos vigiados dia e noite por homens armados, como se fôssemos bandidos.

 

Mas, à medida que os anos afastavam-me de meu passado, maior crescia a necessidade de deixá-lo para trás, de seguir com minha vida como se eu houvesse me tornado outra, menos marcada, mais feliz. Tolice. Não há como enganar este senhor genioso e matreiro chamado Tempo.

 

         Os mortos do Açude Patu precisam ser lembrados, meu amigo. Há de ser sua determinação em causas humanitárias que arrancará do chão os fantasmas enterrados em valas comuns no Cemitério da Barragem e mostrá-los ao mundo, a fim de que o mal seja reparado, de que as almas possam descansar em sono eterno. Albino, fale com o bispo da diocese de Iguatu e realizem uma procissão pelos mortos dos currais, por meu pobre irmão, meu bom pai e minha santa mãe. Acendam velas e rezem pelos maltratados para que assim a memória desta cruel página da história cearense não seja apagada ou tingida com cores menos sombrias. “As almas do povo são o santo do povo”.

 

         O martírio dos flagelados do Patu fará cinco décadas ano que vem. Realize o cortejo, mio ragazzino. Prometo que, desta vez, não fugirei de meu passado e marcharei de mãos dadas com o senhor e com os falecidos não só do campo de Senador Pompeu, mas de todos os outros que se espalharam feito câmaras mortuárias pelos grandes centros do Ceará. Os mortos, estes não retornam mais. Quanto a esta história, Donatti, ela precisa com urgência ser ressuscitada. Estávamos a morrer de sede, bambino, e nos deram de beber aquela água amarga.

 

 

De sua amiga carola, Maria da Paz.

 

18/04/2014, sexta-feira

Emerson Braga

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