O ÚLTIMO MUSEU DO AMANHÃ

 

Naquele dia, Dona Adélia e seu filho, Pedrinho, resolveram fazer um programa diferente: passear pelos muitos salões do Museu do Belo e do Legítimo, o MBL. Logo no saguão, admiraram-se com as paredes alvas, com o piso de uma solidez impecável, com as instalações projetadas para receber diariamente milhares de visitantes ávidos por explorar a história e a cultura do Brasil.

 

O espaço museológico ― moderno, mas também voltado para as mais tradicionais das tradições tradicionalistas! ― prestava homenagem a uma arte elevada, oferecendo aos interessados uma mostra com verdadeiras relíquias produzidas ao longo dos séculos. Todas atestando o requinte, o luxo e a perfeição que desde sempre balizaram nossa realidade.

 

A visitação ao vastíssimo acervo iniciava-se por um corredor repleto de quadros que retratavam os louváveis arquitetos de nosso país: Militares, líderes religiosos, banqueiros, latifundiários, políticos, empresários, âncoras da Globo, colunistas da Veja, atores pornô, enfim, uma infinidade de telas exaltava a grandeza de vultos célebres que, pescando com a própria linha e anzol, guiaram o povo na edificação de um Estado pacífico, honesto, justo e ético. Com a graça que apenas as crianças têm, Pedrinho prestou continência ao busto do Coronel Ustra, imponente ao fim do percurso guiado por um tapete vermelho-sangue. Todos acharam uma gracinha. Que bonitinho!

 

No salão principal, o garoto encantou-se com pinturas a óleo retratando cenas familiares, nas quais a ordem e a opulência fielmente reproduzidas transformavam qualquer discussão estética em coisa descartável. Já a escultura em tamanho natural de um Cristo preso à cruz, fez com que mãe e filho voltassem suas mentes e corações para a única religião merecedora de eternizar-se em pedra. Os sentimentos religiosos exaltados pelo rico trabalho eram maiores e mais belos que a obra em si. Pedrinho fechou os olhos e pediu para que Deus o passasse de ano e reprovasse o filho da empregada de sua casa. Dona Adélia orou baixinho diante do sublime e, depois de implorar pelo fim violento de todos os terreiros e centros espíritas, clamou para que o marido a deixasse frequentar o curso de rainha do lar.

 

Tapeçarias de diversas regiões da federação, móveis antigos em estilo francês e peças decorativas orientais dos séculos XVIII e XIX predominavam em outra sala, onde atrizes ― umas vestidas de sinhás e outras de mucamas ― encenavam a boa relação histórica entre as senhoras e suas escravas. A claridade europeia iluminando a escuridão africana, a igualdade entre as raças, a miscigenação amigável, café com leite. De repente, a negritude da favela, besuntada e sensual, saltou de dentro da réplica de uma senzala cantando e dançando ao som de uma voz branca que partia correntes e grilhões com seu samba ariano. Dona Adélia, muito didaticamente, aproveitou para explicar ao filho que os negros brasileiros deviam sua liberdade a uma bela princesa. Uma princesa de verdade, mamãe?, admirou-se Pedrinho, batendo palmas, ao fim da apresentação musical.

 

Em outro ambiente, o pequeno teve a oportunidade de apreciar relíquias que enalteciam os revolucionários de 1964. Faixas da Marcha da Família com Deus pela Liberdade decoravam o espaço quase todo tomado por obuseiros e outros artefatos bélicos dignos de qualquer Parada de Sete de Setembro. Outro grupo de atores ― uns trajados como soldados e outros como black blocs ― simularam um confronto em que, sem mortos ou feridos, os militares conseguiram controlar o vandalismo terrorista com exímia maestria. De braços passados sobre o ombro irmão, todos encerravam o ato marchando ao som da Canção do Exército. Bandeirolas e cataventos foram entregues às crianças que, satisfeitas, deixavam-se fotografar no colo de homens metidos em coturnos.

 

Ao fim do trajeto, Pedrinho teve um sobressalto ao entrar no salão dedicado aos heróis do futebol brasileiro. Sobre o piso que imitava grama, deu cambalhotas enquanto sua mãe cumprimentava rapazes vestidos como os jogadores da Seleção de 1970. O potente sistema acústico reproduzia as narrações feitas por comentaristas esportivos nas finais de todas as copas vencidas pela seleção canarinha. Gol, gol, gol do Brasil!

 

Depois de tantas lições aprendidas, mãe e filho dirigiram-se para a saída do museu, mas, por questão de segurança, foram orientados a aguardar que um contratempo se dissipasse. Lá fora, um grupo de menores de idade havia sido massacrado pela polícia diante da Catedral Metropolitana. Alguns curiosos filmavam e outros fotografavam os corpos ensanguentados, mas a maioria nem sequer deu atenção ao acontecimento. E por que se importariam? Era dia de eliminatória na Copa das Confederações e o futuro de nossa seleção estava nos pés de um ex-favelado, um rapaz diferente daqueles ali mortos, um que havia dado certo.

 

Emerson Braga

 

Sexta-feira, 15/09/2017

Comments: 1
  • #1

    Marco A (Saturday, 16 September 2017 06:24)

    Genial!