NOS HEMOCENTROS, O PRECONCEITO SANGRA

 

No dia 12 de agosto deste ano, completei exatos 38 anos de vida. Uma vida feliz, da qual não me queixo. A fim de estendê-la, já que ela me diverte e atrai, resolvi fazer uma bateira de exames para verificar como anda a máquina. Não se enganem: Mesmo que estejamos em um relacionamento estável (Eu namoro há três anos com o mesmo sortudo), esperar resultado de exame de sangue, por mais que você se cuide, é como se colocar diante da porta dos desesperados. Nos angustiamos, temos pesadelos, roemos unhas; até que o maldito resultado sai e você pode ler com felicidade, em letras garrafais: “NÃO REAGENTE PARA HIV”, “NÃO REAGENTE PARA SÍLFILIS”, “NÃO REGANTE PARA HEPATITE B”, “NÃO REGENTE PARA HEPATITE C”. Ah! É como desembrulhar um chocolate e comê-lo sozinho! Felicidade. Alívio.

 

Hoje pela manhã, satisfeita com o nível de hemoglobina indicado em meus exames, Dra. Rosália (clínica geral maravilhosa, com um olhar holístico sobre seus pacientes) recomendou que eu me tornasse doador de sangue. Pensei: “Pô, por que não dividir essa felicidade com o planeta? Por que não devolver um pouco da paz e alívio que acabei de ganhar?”.

 

Saí da consulta e fui para o trabalho, decidido a me tornar doador de sangue assim que encerrasse o expediente.

 

Meu namorado me acompanhou até a Praça do Ferreira, onde sempre se encontra disponível uma unidade móvel do HEMOCE. Me cadastrei para doação de sangue e também aderi ao programa para doadores de medula (meu namorado cadastrou-se apenas para o último). Depois que retirou sua amostra, ele foi embora e eu fiquei aguardando minha vez. Ainda não fazia ideia do constrangimento pelo qual eu passaria.

 

Tiraram minha pressão, fizeram teste de anemia, e tudo deu normal (o que eu já esperava, devido os exames que eu já havia feito). Foi no momento da entrevista que a coisa começou a ficar esquisita, claustrofóbica.

 

A agente me perguntou se eu já tive coqueluche, se havia feito alguma cirurgia recentemente, se usava drogas e também perguntou se eu era homo ou heterossexual. Quando respondi que era gay, ela me olhou com seriedade e perguntou: “Você gosta de homem?”, respondi com um sorriso: “ADORO!”. Ainda muito séria, ela desculpou-se e disse que me fazia aquela pergunta por que muitas pessoas não entendem o que seja “homo” ou “hétero” (Para ser franco, eu também não entendo...). Até então, tudo bem. Daí, ela me perguntou se eu estava em um relacionamento estável, disse eu que há três anos namoro o mesmo cara e que sempre usamos preservativo em nossas relações sexuais. Meu questionário e meu estado de saúde atestavam que eu estava totalmente apto para me tornar doador, mas fui rejeitado. Ela explicou-me que lésbicas podem doar sem problema, mas homossexuais masculinos não, porque praticam sexo anal, o que aumenta o risco de contaminação. Foi difícil descobrir que mulheres não têm ânus e que não existem homens com estilo de vida heterossexual que praticam relações homossexuais esporádicas, que envolvem sexo anal com outros homens. Claro que eu quis saber de que inferno eles haviam tirado a ideia estapafúrdia de que meu sangue não servia, daí tive conhecimento da Portaria 2712, de 12/11/2013 do Ministério da Saúde.

 

A tal Portaria trata como “inaptos temporários” à doação de sangue homens que tiveram relações sexuais com outros homens. Para que um homossexual masculino possa doar sangue, ele precisa estar, no mínimo, há um ano sem fazer sexo. Que pessoa saudável fica um ano sem fazer sexo?! Não ingressarei em nenhuma religião que exija voto de castidade, pois sou ateu; não tenho nenhuma patologia de ordem fisiológica ou psicológica que me impeça de transar quantas vezes eu quiser por ano. Aliás, se os bancos de sangue se mantivessem graças àqueles que passam um ano inteiro sem sexo, não teriam nem 5 litros por mês em todo o território nacional!

 

Bem, voltemos à Portaria. Ela traz uma determinação restritiva que, mesmo não abordando diretamente questões de orientação sexual e identidade de gênero, enquadra os homossexuais masculinos:

 

“Art. 64. Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo:

 

IV – homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes”.

 

No entanto, logo em seu segundo artigo, apresenta um parágrafo que estabelece o contrário:

 

“Art. 2º, § 3º Os serviços de hemoterapia promoverão a melhoria da atenção e acolhimento aos candidatos à doação, realizando a triagem clínica com vistas à segurança do receptor, porém com isenção de manifestações de juízo de valor, preconceito e discriminação por orientação sexual, identidade de gênero, hábitos de vida, atividade profissional, condição socioeconômica, cor ou etnia, dentre outras, sem prejuízo à segurança do receptor.”

 

Essa Porcaria, desculpem-me!, Portaria fere o artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Se o motivo de homossexuais masculinos não poderem doar sangue não for por conta da orientação sexual, mas pelo fato de manterem relações anais, é no mínimo estranho que heterossexuais que praticam sexo anal não estejam incluídos.

 

Já fora da sala de entrevista, falei que compreendia porque eles não poderiam coletar meu sangue, mas que eu não concordava com aquilo, que era uma atitude discriminatória e que fomentava preconceitos na sociedade. Uma funcionária, então, pediu que eu não falasse sobre o assunto para não causar desconforto aos outros doadores. E o meu conforto? Como eu estava me sentindo não contava?! Minha raiva, decepção e vergonha nada significam? O constrangimento pelo qual passei é irrelevante? Reconheci no olhar daquela mulher o mesmo olhar que lançam os machinhos babacas quando um gay entra no banheiro masculino; o mesmo olhar das mães que afastam seus filhos de travestis, como se eles carregassem uma doença contagiosa; o mesmo olhar de padres sádicos; de pastores monstruosos; de políticos aloprados; o mesmo olhar de vizinhos que jamais dariam o cu, mas que adoram imaginar o que andamos fazendo do nosso.

 

Tenho plena consciência de que homossexuais masculinos realmente estão mais expostos à contaminação por meio de práticas sexuais. Mas nós estamos mais suscetíveis à infecção e ao adoecimento pelo vírus HIV ou qualquer outra doença venérea porque nos é negado a dignidade de uma relação aberta diante da sociedade que nos oprime. O preconceito nos transforma nos promíscuos que ameaçam a saudável e virginal família brasileira.  A homofobia e a transfobia impactam negativamente em nossa autoestima. Isto, somado às dificuldades de sociabilidade e à hostilidade no ambiente escolar, resulta na exclusão do convívio familiar, na descontinuidade da educação formal e na desqualificação para o mercado de trabalho. Assim, nós homossexuais acabamos marginalizados, o que nos transforma em alvo de violência física e psicológica.

 

Se homossexuais pudessem namorar dentro de casa e frequentar espaços públicos na companhia de seus parceiros, certamente não fariam de suas vidas sexuais uma prática clandestina. Estariam menos inclinados à promiscuidade e menos expostos ao sexo desprotegido.

 

 O que passei hoje é mais uma prova de que precisamos estar vigilantes, precisamos lutar contra essa ameaça antes que ela se torne parte de nossas vidas.

 

Apenas o preconceito é capaz de alavancar contradições como esta: Os estoques de sangue no país não atendem à demanda; muito pelo contrário, sempre estão em situação preocupantes e, mesmo assim, se dão ao luxo de desprezar a doação de sangue de determinadas populações, o que reforça a discriminação já tão praticada por boa parte da sociedade.

 

Tentei doar sangue na esperança de poder ajudar a salvar a vida de alguém. Saí do HEMOCE sangrando, ferido por uma texto seboso que diz estar salvando vidas, enquanto atira tantas outras para o universo dos indesejáveis, onde não há lei, onde somos humilhados, espancados e assassinados.

 

Ao menos consegui que coletassem minha amostra para o banco de medula. No que depender de mim, sempre haverá esperança.

 

Emerson Braga

 

18/12/2014, quinta-feira

Comments: 7
  • #7

    Selma (Wednesday, 31 December 2014 22:42)

    Confesso que comecei lendo por curiosidade, mas não resisti de ir até o final, tb não sabia dessa tal porcaria, opss portaria, é ridicula demais. Parabéns por orientar pessoas como eu através dos seu texto, agora me inspirou a ler outros.

  • #6

    Gina Girão (Friday, 19 December 2014 09:27)

    Quanto mais as coisas mudam, mais permanecem as mesmas... Eca! Meu querido Emerson, apenas viva bem e seja feliz. Mas é uma pena que seu sangue bom não possa contaminar outras pessoas por aí: o mundo tá bem precisado de gente lúcida e lírica (eu, pelo menos, preciso sempre). Ah, sim, ia esquecendo: a portaria é porcaria, mesmo. Te amo.

  • #5

    Denise (Friday, 19 December 2014 06:03)

    Cara, Emerson, nem sei o que dizer... O que sinto é um misto de vergonha, tristeza, desesperança e raiva. Mas ando cansada, amigo, porque tudo parece perdido. Parei de falar porque o som de minha própria voz já me irritava e o das resposta que ouvia me deixavam surda.
    Não posso nem imaginar o que vc passou e sentiu, só posso lamentar. De verdade, eu sinto muito!
    Super abraço! Vc é uma pessoa linda e espero mesmo que absurdos como esses não o mudem. Beijo!!

  • #4

    Ana Cristina Moreira (Friday, 19 December 2014 05:14)

    Que pena Mercinho que a opção sexual da pessoa esteja a frente da solidariedade! Pra mim vc é um exemplo de pessoa! Bjs no coração!

  • #3

    Marco A (Friday, 19 December 2014 04:18)

    É, moço, o respeito à nossa orientação sexual vem a lentíssimo conta-gotas; mas não vamos desanimar. Estou triste pelo que você passou, estou triste por todos nós. Lamentável!

  • #2

    CEU (Thursday, 18 December 2014 16:32)

    Primeiro, a Portaria é contaditória e preconceituosa sim. Se o candidato homem, teve relações com homens e tem exames negativos para doenças sexualmente transmissíveis, o que o impede, quanto à sua vida sexual, de doar sangue? Segundo: se o pretexto é seguir a Portaria, a atendente não deveria perguntar ao candidato homem se ele é heterossexual ou homossexual, mas se ele teve relações com homens nos últimos doze meses; além disso, para atender à portaria, deveriam perguntar às mulheres heterossexuais se seus parceiros tiveram relações com homens nos últimos doze meses. Depois, o que sobra é que a norma é estúpida e que o seu "cumprimento" é ainda mais estúpido. No fim, sofre aquele que se dispõe a doar, o potencial recebedor e a sociedade interia.

  • #1

    Alynne (Thursday, 18 December 2014 15:36)

    Fico surpresa com tantas restrições. Se os exames estão bem,perfeitos, dentro dos critérios, pronto! Essa portaria não é só por questões de riscos,é por questões fundamentalistas e preconceituosas. Eu acho!