NOITE DE NATAL

 

Palmira sentou-se à soleira da porta a fim de aproveitar o pouco da brisa que vinha da Avenida Perimetral e também para ser a primeira a ver quando ele chegasse. Estava cansada. As duas faxinas que tinha feito naquele dia haviam esgotado todas as suas energias. As pernas e os braços pareciam-lhe quatro molambos inúteis que, com alguma dificuldade, mantinham o caçula sobre seu colo. O peito dele não chiava mais, estava curado. Palmira cheirou a cabeça do filho e tentou amá-lo ainda mais, mesmo sabendo que aquela seria uma tarefa impossível. Durante alguns meses, quem sabe por um ano inteiro, não tivesse que voltar ao hospital. Quanto ao exame de prevenção do câncer, como havia dito a agente de saúde, apenas seria feito na Clínica da Família quando aparecesse vaga. Tinham-se passado dois anos desde seu último exame, sentia medo, mas não tinha pressa.

 

Aquela mulher esqueceu foi meu nome, tem medo de vir onde moro – lamentava Palmira, apalpando receosa o seio livre do apetite voraz de seu menino. Tenho nada não, uma coitada igual a mim não há de pegar doença de granfino – concluiu aliviada enquanto observava o vai e vem das pessoas correndo contra a meia-noite.

 

Minha filha não vem com o marido, então eu trouxe um pouco de bolo mole pra tu – disse a vizinha com a qual Palmira não se dava bem, estendendo um prato de alumínio, quatro fatias de bolo, uma para cada membro da família. A disputa por um varal não poderia ser motivo para tanta intriga, não em noite como aquela, em que o filho respirava sadio e feliz em seu colo, com lugar garantido na creche, e o outro brincava na sala, contente com a matrícula em colégio particular e o fardamento completo que havia recebido como prêmio em um concurso de redação, primeiro colocado.

 

Meu gás acabou bem na horinha que ficou pronto, acredita? – riu Palmira para a mulher, devolvendo à vizinha o prato cheio de farofa de frango desfiado. Satisfeita com mais uma opção para sua magra ceia de natal, a vizinha espremeu-se à Palmira, em um abraço desajeitado e em seguida voltou para sua casa enfeitada com um pisca-pisca banguela, posto em sinal de festa sobre a porta da rua. No dia seguinte, voltariam a brigar por qualquer coisa, mas estavam felizes por terem uma a outra, pois, naquelas ofensas e maldições cotidianas, elas aprendiam mais sobre amizade e amor que suas sorumbáticas patroas – tão lapidadas e frívolas, tão gentis e ocas – jamais saberiam. 

 

E teu pai que não chega? – queixou-se ao filho mais velho enquanto seu pescoço esticava na direção da esquina pouco iluminada e na qual, dia desses, haviam matado um travesti que era muito seu amigo e que a maquiava quando ela pedia.

 

A cachaça. Palmira tentou fugir do pensamento, da triste recordação do último natal. Procurou livrar-se da lembrança dolorosa e se concentrar no filho que, corado e forte, sugava-lhe o leite. O leite. Mas a cachaça não saía de sua cabeça.

 

Já tá tarde e ele não chega, e se ele botar boneco e for preso de novo? – temia Palmira o pior. Uma perna nervosa, a unha pintada do dedão triturada por seus dentes. Da última vez, a polícia bateu tanto nele que o pobre só teve alta depois do ano novo – lamentou gravemente não a vergonha de vê-lo preso por embriaguez, mas a violenta e desnecessária injustiça.

 

Dizem que a miséria mata o amor. Mas Palmira era uma necromante talentosa, conversava com o amor quase morto e o trazia de volta à vida mais robusto, mais ardente.

 

Ele tem lá a bebida dele, mas nunca me bateu – dizia para si, orgulhosa por ser a única mulher de sua rua que jamais havia apanhado do esposo. Chamavam-no de frouxo. Era não. É preciso coragem para não ferir quem se ama, mesmo quando o desespero nos apodrece a virtude de sermos pessoas boas.

 

Quando terminou a novela das 21 horas, esfregando os olhos, o menino mais velho aproximou-se da mãe e recostou a cabeça em seu colo, no qual o caçula dormia satisfeito, saciado. O gelo na jarra de suco de maracujá iria derreter e a comida esfriaria, as baratas e seus ardis passeariam sobre a ceia irreal, mesmo sendo a fome verdadeira.

 

Foi a cachaça de novo – constatou Palmira com tremenda tristeza e resignação, sabia que no dia seguinte teria que procurá-lo no 8º Distrito Policial ou nos hospitais, sentia dores na alma apenas de pensar em encontrá-lo numa vala qualquer, sem vida. Se meu Vicente morrer, eu me mato, me mato, e tu, Deus, vai ter que cuidar desses inocentes – chorou Palmira sem alarde, abraçada aos filhos, ausente a coragem de desejar-lhes feliz natal.

 

Que é isso, nêga, tá chorando por quê? O emprego é meu, piveta, o emprego é meu – comemorou Vicente enquanto gargalhava sem cheiro de pinga, junto à mulher que parecia emergir de um medonho pesadelo.

 

Surpresa com o marido que havia surgido do nada, feito um mágico maravilhoso, Palmira enroscou trêmula seu braço ao pescoço do homem que amava e beijou-o com a mesma doçura que o beijara um dia, diante de um padre. Manteriam o juramento mútuo, ficariam unidos até o fim.

 

Agora eu tô chorando é de felicidade, pivete – riu Palmira, envergonhada, enxugando com as costas das mãos as lágrimas que não possuíam mais razão de ser. Anda, entra, que eu caprichei na ceia, e tu não vai me acreditar, meu lindo, a lacraia da Ana Néri trouxe quatro pedaços de bolo mole pra gente, tu acha? Tudo isso parece até milagre de natal, né não?

 

Emerson Braga

25/12/2014, quinta-feira

Comments: 1
  • #1

    Alynne (Thursday, 25 December 2014 09:39)

    Adorei!