LUGAR DE CRIANÇA

Aos oito anos de idade, consegui o primeiro emprego de minha vida em uma empresa de fundo de quintal que processava pasteizinhos de cebola. Minha função e a dos outros 4 pequenos funcionários era a de colocar o salgadinho em embalagens plásticas para que o produto fosse distribuído nas mercearias do bairro. Trabalhávamos 4 horas por dia, em um calor insuportável, sentados em banquetas desconfortáveis e com acesso limitado à água. Conversas e brincadeiras também não eram permitidas.

 

Meus pais nem sequer imaginavam o que fiz, durante um mês, em meu horário de brincar com a molecada da rua. Eu sabia que seu Moraes e dona Paz jamais concordariam com aquilo, portanto, mantive segredo sobre meu trabalho pelo tempo que ele durou. Meus irmãos também não sabiam por onde eu andava. E nem se importavam. Afinal, o caçula sempre é tido como um pé no saco, não é mesmo? Então, pude levar meu projeto de independência financeira adiante sem que ninguém o frustrasse.  

 

Os outros funcionários da pequena indústria chamavam-se Luciano, Paulo Henrique e Jackson, que também foram meus amigos de infância. Não me recordo do nome do outro garoto, pois eu não o conhecia bem. Luciano era o transgressor da turma. Sempre que não estávamos sendo vigiados (o que era raro, pois o dono não permitia que comêssemos sua produção), Luciano cuspia dentro dos saquinhos, em seguida enchia-os de pasteizinhos e depois dava um nó. Éramos contra o comportamento de nosso colega de trabalho, pois, além de achar aquilo nojento, temíamos por nossos empregos. Do topo de seus dez anos de idade, Luciano dizia que tanto o dono do negócio quanto as pessoas que comprovam os salgados mereciam aquilo. E, claro, se disséssemos alguma coisa, apanharíamos dele.

 

O crime de Luciano nunca foi descoberto. Ao término de meu primeiro e único mês de trabalho, recebi o equivalente a uns R$ 30,00. Gastei todo o meu soldo na compra de cartões de Natal para as pessoas que eu amava. Minha ostentação custou a verdade sobre minhas atividades clandestinas: Meu pai quis saber a origem do dinheiro utilizado na compra dos cartões. Obviamente, ele duvidou que seu filho de oito anos de idade estivesse trabalhando. Daí, pegou-me pela mão e fez-me levá-lo à empresa que explorava minha mãozinha de obra. Lá, o dono do negócio disse que não me conhecia. Porém, Luciano, de rosto afogueado pelo calor do forno, confirmou que eu também trabalhava lá. Naquele mesmo dia, ele foi demitido (tanto seus pais quanto o dos outros garotos sabiam que eles trabalhavam ali). Meu pai censurou o homem, disse-lhe que ele não podia empregar uma criança sem consultar seus responsáveis. Felizmente, não houve violência ou troca de ameaças entre os dois. Seu Moraes saiu dali orgulhoso do pequeno filho que havia conseguido sozinho o primeiro emprego, mas não permitiu que eu prosseguisse em minha audaciosa empreitada.

 

O que meu pai não entendia ― e que ainda hoje não entende ― é que, caso eu percebesse por conta própria a opressão e a exploração às quais haviam me submetido por um mês, eu teria para onde voltar. O mesmo não acontece com as crianças que têm suas infâncias mutiladas pelo trabalho excessivo, que têm tolhido o sonho de um dia se tornarem quem desejassem ser.

 

Cansa-me o discurso de pessoas que se orgulham de ter ajudado seus pais em lavouras ou no comércio e que, por isso, não veem problema em uma criança trabalhar por 12 horas diárias em um canavial. Acontece que um patrão não é pai e nem mãe de seus operários mirins. Se estes reclamarem do excesso de trabalho, ou não ganham comida, ou não recebem dinheiro, ou apanham para aprender o silêncio, ou permanecem em cárcere privado. Uma pessoa capaz de explorar mão de obra infantil não faz ideia do que seja empatia e não possui nenhum senso de moral ou ética. Tudo é permitido sob o lema de que é-melhor-estar-trabalhando-para-mim-do-que-solto-na-rua-cheirando-cola-e-roubando.

 

A experiência que tive, ainda criança, trabalhando por um mês, foi extremamente importante para meu desenvolvimento enquanto ser humano. Todavia, essa mesma experiência, quando vivenciada por horas extenuantes, em ambiente insalubre e ameaçador, terá um efeito desastroso na vida dos pequenos operários: Crescerão acreditando que a escravidão é uma dádiva dos deuses que sempre lhes garantirá pão e água.

 

Dentro do próprio lar, arrumando seus brinquedos, ajudando na limpeza da casa e cuidando dos bichos de estimação, as crianças vivenciam situações mais adequadas para o aprendizado do que significa ter responsabilidades ou desempenhar um trabalho. Programas como o Bolsa Família foram criados para que os pequenos fossem tirado das ruas ― onde mendigavam ou vendiam produtos para ajudar na renda familiar ― e devolvidos à escola. Meu pai não precisava do meu dinheirinho, mas muitas famílias encontravam, e ainda encontram, na exploração da própria prole a única saída para não ver os filhos morrerem de fome.

 

O retrocesso de agora me assusta justamente porque voltei a deparar-me com pequenos vendedores de limões ou de chicletes nos semáforos de Fortaleza. Diferente do que me aconteceu, os pais daqueles jovens trabalhadores não poderão pegá-los pela mão e levá-los de volta para casa, pois já não há uma casa para voltar, um lar que realmente os acolha e os proteja.

 

Por isso, antes de dizer que “trabalhar não tira pedaço e nem dignidade de ninguém”, lembrem-se das 118 crianças encontradas, em outubro deste ano, em condições degradantes de trabalho em um lixão de Boa Vista. Olhem para a imagem das crianças disputando espaço com ratos e urubus e me respondam: Em poucos anos, quanto de dignidade lhes sobrará?

 

Emerson Braga

 

01/11/2017, quarta-feira

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