LIMBO DAS PEGAÇÕES



Outra dose de vodca, mais uma orbital roxa posta sob a língua. A noite agita-se e os entendidos gritam ao som da balada inebriada pelo cheiro doce da fumaça aromatizada, pelas luzes que piscam como explosões cósmicas, big bangs que dispersam novos universos sobre os pensamentos entorpecidos. A pele tremula febril enquanto o corpo se prepara em nossa selva de insalubres sabores para a dança do acasalamento. Somos todos presas e caçadores, que atiram suas redes enquanto caem tranquilos em outra armadilha.

 

As bichas bombadas já tiraram suas camisetas e se puseram a sacudi-las acima de suas cabeças que só pensam em rapazes franzinos e de paus enormes. Todas dotadas de bíceps que desafiam a anatomia humana, repletas de hormônios equinos. Mantém seus músculos resplandecentes sob os holofotes, transpiram como se estivessem besuntadas, amanteigadas, envernizadas para a truculenta trepada da noite. Esses caras são uns vampiros narcisistas, escravos da própria estética corpórea. Eles nos esmagam dentre suas nádegas rijas e firmes, com suas bundas projetadas por um ramo do fisiculturismo que fabrica estivadores que precisam com tremenda urgência ser enrabados duas ou três vezes ao dia; antes que se tornem flácidas todas as carnes e a idade acabe por torná-los obsoletas peças de abatedouro.

 

Do outro lado encontro as afetadas, espreitam vigilantes próximas ao banheiro. Aguardam pacientemente por adolescentes trôpegos e de arbítrio fulminado pelo efeito do álcool batizado. Por que esses veados falam tão alto e gargalham como se tudo ao redor fosse uma grande piada? Não passam de umas putas estridentes, agem como insuportáveis gralhas. Enquanto arquitetam seus planos sensuais de ataque aos bêbados e drogados da noite, aproveitam para descrever em detalhes suas improváveis façanhas sexuais, incrementadas por tolas inverdades. São uns coitados que não sabem nada além da própria dor, uns pedintes que mendigam o prazer alheio, postos de joelhos ao lado dos mictórios, de bocas escancaradas, à espera do corpo e do sangue que os condena a regular sensação de pecado. Bebem sedentos do esporro que lhes proporciona a amnésia capaz de silenciar a voz de recalques. Em banheiros públicos, todo gozo absolve e é santo.

 

Lá, juntos ao balcão, quatro michês aguardam pacientemente por clientes incautos e dispostos a terem suas carteiras esvaziadas e as expectativas preenchidas com uma noite sudorífera e venérea. Putos merecem cada centavo que nos arrancam, pois não nos chateiam com as coisices típicas dos relacionamentos que não são venais. Não cobram nada além da paga pelos serviços que nos prestam, não nos telefonam quando queremos estar sozinhos e em silêncio, não nos contam histórias tristes, não perguntam sobre os hiatos de nossas vidas, não nos respeitam, não nos amam. Michês não são homens, são punhetas elaboradas que não possuem apenas cinco dedos, mas cabeça, tronco e membros. Todos tesos, eretos, ansiosos pela grana que se segue à cópula calculada com antecedência. Um simples beijo na boca pode dobrar o valor do profissional que amante se faz porque assim o tornamos com nosso poder de compra. Um deles me olhou demoradamente. Estou quase liso... Outra vodca.

 

Não quero voltar à pista de dança. Preciso diminuir minha frequência nesses inferninhos entendidos. Aqui está impregnado de mil caras com quem já fiquei, dos quais não recordo o nome e que insistentemente me olham como se me cumprimentassem. Dizem em seus felinos olhos que não esqueceram minha cara de tédio, que a transa foi maravilhosa ou que foi um completo desastre. Encaram-me como se julgassem o tamanho de meu pau e a quantidade de pelos que tenho na bunda. Pensam que sabem sobre mim, que a vodca me deixa transparente, que ser solitário não é uma condição minha, que faz parte de meu errante charme.

 

Não repito homens. Não gosto de tê-los duas ou mais vezes deitados sobre minha nudez branca de morto. Sinto vergonha e medo do homem de ontem, sua existência é minha delação.

 

Quando olham para mim, o que procuram? O que pensam ver? Não digo! Não mostro! Preciso ir aonde não me enxerguem, tantos rostos me cansam, todos parecem espelhos, todos me assombram.

 

A sala escura me abraça e só então paro de resistir. Agora somos todos cegos no castelo, fantasmas sem rosto, apenas forma e cheiro. De sentidos atentos, permito que meu tato percorra as paredes, enquanto caminho cautelosamente. Há armadilhas pelo caminho, há doenças venéreas, há mau hálito. Um corpo se põe diante de mim e minha musculatura retesa, pondo-se de prontidão. Uma boca invisível aproxima-se de meus lábios. Escuto seu resfolegar enquanto minha respiração absorve hormônios diluídos em um selvagem e agridoce perfume. Ele não faz a barba há alguns dias e isto torna inevitável que sua boca seja convidada a entrar na minha, enquanto meus dedos correm seus cabelos cacheados e as mãos dele apertam-me a bunda com uma pegada impetuosa. Outra língua lambe minha orelha e me saqueia um gemido. Agora somos três, o que não nos causa constrangimento algum. Não podemos tirar as roupas completamente, despir-se é correr o risco de sair em pelo deste delicioso limbo. Desabotoo minha blusa enquanto meus parceiros erguem suas camisas acima do peito. Baixamos, desastrados, nossas calças até a altura dos joelhos. Dentes sobre um de meus mamilos quase me levam às lágrimas, sinto arrepios eriçarem as células mortas de meu corpo, ressuscitadas de tanto “sim”. O outro engole-me faminto, da glande aos pelos pubianos, sorve-me às pressas seivas genitais, talvez por temer que a consciência e o namorado o surpreendam. Não somos humanos, somos três gemidos, três tecidos nervosos, três amantes que, sob o jugo da claridade, jamais se amariam. Um outro sujeito me lambe a axila e bebe de meu suor e, depois, passa a língua quente e úmida em minha cara. Sua boca tem cheiro de urina, algum cara deve ter mijado dentro dela, mas nada importa. Agora somos quatro, já não me interessam moléstias sexuais ou bocas fétidas, quatro é um número mágico. Sou rendido e atirado ao chão, um deles me curra agressivo, mordo meu lábio inferior e permito que ele continue a me matar, sou comparsa de meu próprio assassinato. Não é a mim que ele pune, por isso aguento satisfeito e obediente o castigo, estou a purificá-lo, a redimi-lo, eu sou a prova de que ele não precisa se sentir inútil e fraco, não no escuro, não agora.

 

Já não sei quantos somos. Sinto uma demente coletividade de bocas sobre minha bunda, a lamber-me o ânus, a ferir-me com vigorosas dentadas as nádegas febris. Meus dedos revezam-se nômades dentre lábios e cus que se confundem em uma massa de fluídos plangentes, empanturro-me da mesma paz que protege de nossa incômoda presença toda gente dita normal. As secreções emergem de todos os lados. Uns gritam, outros choram, alguns riem, todos afetados pela mesma saborosa dor, pelo mesmo suculento desencanto. Nos gozamos bocas, pernas, bundas, costas, barrigas, peitos,  almas. O gozo que recebemos em nossa costumeira escuridão, de repente, transmudado em bálsamo. Seres notívagos, jamais nos veremos uns aos outros. Nós, cúmplices no desespero de existir.

 

Recompostos, saímos pouco a pouco, um a um, a fim de não nos encaramos. Resta-nos nada mais que um segredo, um segredo que se repete no infinito, com pessoas diferentes, que sempre interpretam as mesmas personagens. Nada de mal irá nos acontecer. Estamos protegidos pela ausência de luz. Mais tarde, caminharei dentre os “normais” como se fosse um deles, conversaremos amenidades, riremos juntos, como bons amigos e cristãos. Essas impolutas e imaculadas pessoas não se importam com o que eu faça em meus lugares escuros; contanto que, quando a eles reunido, eu seja educado e comedido. Exigem que eu simule aquilo que eles chamam “integridade moral”, que eu mimetize o deformado (mas luminoso) caráter que vigora em suas vidas.

 

Gostaria que as luzes se apagassem para sempre. Talvez imerso em um eterno negrume, eu jamais voltasse a caminhar sobre ovos, a deitar sobre camas-de-prego com o infeliz propósito de entreter aqueles que me hostilizam enquanto sorriem.


Emerson Braga 


17/12/2014, quarta-feira (originalmente escrito e publicado no Recanto das Letras em 29/11/2013)

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