DE QUANTOS GIGABYTES É SUA INFÂNCIA?

 

Hoje acordei com saudades dos tempos de menino, de quando eu corria com os deveres de casa a fim de ser liberado para me encontrar com meus amigos: Magda, Marden, Lelê, Alexandre, Arley, Júnior, André, Bauzinho, Neto, Michel, Gardênia, Gil, Cacá, Liduína, Fabrício... Alguns ainda permanecem em minha vida, mas a grande maioria, inevitavelmente, quebrou a promessa que juntos fizemos de jamais crescer e seguiram com suas vidas.

Todos tínhamos em média 10 anos de idade quando decidimos fundar o Grupo Arco-Íris (nada a ver com bandeiras LGBTTT, apesar de naquela época eu já ter dado meus primeiros passos como ativista... Rs!), tratava-se de uma organização infantil na qual tínhamos reuniões, um jornal, um serviço de correspondência entre amigos (Sim, desenvolvemos um whatsapp de papel!), promovíamos festas, concursos de beleza, números de dança, pecinhas teatrais, gincanas e até mesmo viagens (os velhos piqueniques que reuniam famílias inteiras em um dia na praia ou na serra).

As pessoas vinham de outras ruas e até de outros bairros para prestigiar nossas apresentações feitas com figurinos de papel e música tocada em uma vitrolinha, tudo muito improvisado, mas feito com paixão. Éramos uns pequenos amantes da arte e da diversão que pouco nos importávamos quando esquecíamos a fala ou alguém faltava justamente em dia de estreia porque havia levado pau em matemática. Sem problema! Substituíamos nossa estrela por alguém da plateia e o espetáculo seguia sem maiores contratempos.

Lembro com especial carinho da semana das mães de 1988. Dissemos com muitos dias de antecedência que iríamos fazer a escolha da Mãe do Ano. As comadres se desdobraram em mais amabilidade e atenção com os próprios filhos e com seus amiguinhos, tudo pelos 15 segundos de fama. Para surpresa geral, na leitura do nome da felizarda (criamos toda a expectativa retirando um pedaço de papel de um envelope), revelamos que todas haviam sido contempladas com o disputado prêmio, que consistia em um botão de rosa e uma foto com seu filho, filha ou filhos. “Todas as mães são do ano”, dizíamos, abraçando-as satisfeitos.

Minha cabeça e minha alma viviam em constante estado de graça e produção criativa. Ainda vivo assim, impulsionado pelo mesmo frenesi que me acompanha há mais de três décadas. A infância me moldou em uma criatura inventiva, que raciocina com a possibilidade do impossível, um homem crescido que acredita em mágica e brinca com a sobrinha de seis anos como quem não teme levar um carão dos adultos por estar sendo ridículo. Se eu não fosse ridículo, você não estaria se divertindo com este texto. E quero que você se divirta.

Fico meio receoso com as tecnologias que hoje substituem os amigos e os jogos interativos da infância. Sou louco por redes sociais, mas estas ferramentas de comunicação deveriam funcionar como meros acessórios das complexas relações humanas. Cada vez mais – principalmente jovens e crianças – se relacionam com a tela touch screen com a naturalidade de quem bate um papo na hora do intervalo, no pátio da escola, lado a lado, sentados no mesmo banquinho de madeira. Amizades nascem e são destruídas na velocidade de um torpedo. Os emoticons como carinhas sorridentes, beijinhos e bracinhos para cima não podem substituir uma relação autêntica. É por meio do convívio social diversificado e intenso que desenvolvemos nossa personalidade e nos tornamos adultos aptos a viver com humanidade e sensibilidade em um mundo cuja evolução emocional não vem mais da Terra do Nunca, do Sítio do Pica-pau Amarelo ou da Ilha de Lilliput, mas do Vale do Silício.

Acredito que o uso precoce destas tecnologias realmente seja capaz de formar adultos mais capacitados em muitos aspectos, porém duvido que traga algum benefício para a inteligência emocional daqueles que já nasceram ganhando página própria no facebook.

Crianças são computadores humanos inteligentíssimos e dotados de surpreendente capacidade de armazenamento e processamento de dados. Os pequenos tanto podem se beneficiar do último game da Sony como também de uma brincadeira no quintal com os primos e amigos, uma ida ao museu, ao teatro infantil ou de um simples passeio de carro em família. Quanto mais diversas as experiências, mais vasto e bonito será o mundo dos pequenos.

É desperdício de espaço permitirmos que os HDs infantis possuam somente diretórios voltados para a virtualidade das coisas. Com tantos gigabytes de memória, as crianças podem vivenciar muitas e variadas experiências, associá-las, compará-las, compartilhá-las e, a partir disto, criar algo maravilhoso, novo. Por que negar aos pequenos aquilo de que lembramos com tanto carinho, muitas vezes com lágrimas nos olhos? Softwares não são substitutos para o contato com o outro.

No outro, reside o encanto, a surpresa, a novidade, a experiência enriquecedora. Em computadores, não há nada de novo, apenas aquilo que nós mesmos pusemos lá, como as fotografias que simplesmente esquecemos por não sabermos sequer em que pasta as salvamos.

 

07/08/2014, quinta-feira

 

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