DA VERGONHA DE TER MEDO

 

No dia 12 de agosto deste ano – dia no qual completei 38 anos de uma vida tranquila da qual gosto – deparei-me em uma parada de ônibus com meus próprios preconceitos e fantasmas. Daí, ao constatar que eu ignorava algumas importantes variáveis, tive que refazer o balanço que até então eu tinha de meu papel no mundo.

            Era noite e eu voltava do cursinho. O bairro da Serrinha não é um dos mais seguros de Fortaleza e, às dez horas da noite, é bom que se tenha cuidado em qualquer lugar da Cidade Luz.

Antes de chegar à parada de ônibus avistei dois garotos negros sentados sob a marquise. Constatei que eles haviam ficado em estado de alerta desde que haviam percebido minha proximidade. “São ladrões”, pensei. “Dois adolescentes pobres, negros, à noite, em uma parada de ônibus deserta é assalto”. Cauteloso, preferi ficar uns dois metros distante da parada de ônibus. Um dos garotos tinha um curativo sob o queixo e o outro o olhar de quem parecia ter sido ferido e magoado por muito tempo. Pensei em sair dali para um lugar mais movimentado e iluminado, mas então cogitei que o movimento de fuga os convenceria de que eu era uma vítima fácil e que esboçaria pouca ou nenhuma reação. Permaneci parado, cara amarrada, braços cruzados, mirando a direção da qual meu ônibus viria e que, naquela noite, parecia demorar uma eternidade.

            _ Se o senhor quiser a gente sai daqui. – Disse o menino com o esparadrapo no queixo. Sua voz era nasalada, afetada, quase feminina. Só então percebi que ele estava tão assustado quanto eu.

            _ Por que eu iria querer que vocês saíssem? – minha pergunta tentou negar o desejo que realmente existia.

            Os dois se entreolharam como se confabulassem, discutissem por meio de uma linguagem íntima e silenciosa se eu era digno de confiança. Depois de alguns segundos, o mais desinibido voltou-se para mim e esclareceu sua proposta:

            _ É que o senhor é branco, tá bem vestido (eu estava de bermuda, tênis e blusa polo) e é hetero. Tá vendo isso aqui no meu queixo? Foi um homem igual ao senhor que fez isso comigo, só porque eu sou gay...

            Gelei de vergonha por parecer branco, bem vestido e heterossexual. Não qualquer heterossexual, mas aquele tipo que os dois temiam. Gelei de vergonha por ter acreditado que o fato daqueles meninos serem pobres e negros era evidência suficiente para que eu os julgasse como bestas homicidas, que iriam me matar a fim de roubar meus caros acessórios. Eu quase por completo – desde o cheiro em meu corpo ao clareamento em meus dentes – coberto de uma coisa que eu acreditava até então me deixar belo, interessante, atraente, mas que naquele instante apenas serviu para que eu tomasse de assalto a segurança de dois meninos que temiam ser covardemente espancados por mim.

Um incômodo talvez ainda maior que o medo de ser roubado tomou conta de meus pensamentos e uma das muitas vozes de minha consciência ordenou que eu tentasse reparar meus preconceitos, gritou-me que não haveria momento melhor que aquele.

            _ Eu não sou heterossexual. – disse eu, simplesmente, a fim de com eles estabelecer um elo. Pela primeira vez em minha vida desde que abandonei meu castrador armário, pareceu-me difícil dizer aquilo, a declaração soou falsa, artificial. Talvez porque naquele instante eu encarnasse a figura do branco de classe média agressor de homossexuais negros e pobres. Não sei. Por mais que eu me esforçasse, pareceu-me impossível livrar-me do sentimento de que eu realmente parecia ameaçador, e isto me causou uma sensação perturbadora.

            _ O senhor? Gay? Não parece não... – debochou com um sorrisinho malicioso no rosto o menino de queixo ferido – Mas se o senhor tá dizendo, vou fazer de conta que acredito. Olha, meu nome é Eduardo, mas a minha galera só me chama de Duda. Esse aqui é o Aurélio. Ele tá triste porque o namorado tem vergonha dele e só quer dinheiro o tempo todo.

            Pedi para sentar-me com eles e começamos a conversar sobre as razões da tristeza de Aurélio, que tinha uma atitude e um semblante completamente avessos aos de Duda que, na medida em que ficávamos à vontade, se revelava ainda mais esfuziante e tagarela. Gostei de pensar que não éramos assim tão diferentes. Acreditei por um instante que se nos despíssemos de nossas roupas, tons de pele e códigos sociais, nos reconheceríamos em nossas esperanças e angústias, nos identificaríamos ao ponto de saber exatamente o que dizer um ao outro.

Esboçando uma maturidade quase caricata de tio “entendido”, falei de minhas experiências amorosas infelizes e o que fiz para superá-las. Enquanto Duda bebia do que eu dizia com sincero interesse, Aurélio me ignorava com o enfado de quem não confia mais nas palavras dos heterossexuais brancos e bem vestidos. Talvez realmente fôssemos de mundos diferentes, e esta ideia me exasperava.

            _ Se o senhor não tivesse namorado, eu ia propor um negócio. – falou Duda, em determinada altura da conversa, com um olhar de “Engraçadinha” e um sorriso de “Talentoso Ripley”.

            _ E o que seria? – quis saber eu, apesar de já prever o que ele diria.

            Fingindo uma timidez que não lhe era própria, Duda revelou:

            _ A gente tá aqui esperando um homem. Não sei mais se ele vem, tá demorando muito. De vez em quando a gente sai com ele. Será que ele já passou por aqui, viu a gente conversando com o senhor e desistiu? – preocupou-se Duda, voltando-se para um cabisbaixo e indiferente Aurélio.

            Senti uma tristeza medonha por eles e uma raiva desmedida daquele que os molestava com frequência, aproveitando-se da miséria e da juventude maltratada daqueles dois perdidos em uma noite que poderia feri-los ainda mais. Pedi que não fizessem aquilo, que fossem para casa, pois já era tarde e moravam em um bairro distante. Duda balançou a cabeça rejeitando o que eu dizia e falou que ambos namoravam dois adolescentes viciados e que apanhariam feio caso retornassem ao Conjunto Ceará sem o dinheiro necessário para que seus jovens amantes pudessem comprar pedras de crack.

            _ Ele vai me bater de qualquer jeito mesmo. – ouvi pela primeira vez a voz de Aurélio, e aquele som me quebrou por dentro. Era o som de quem, mesmo que ainda tão moço, já havia desistido de muitas coisas.

            Tinham passado alguns ônibus desde o início de nossa conversa. Talvez aquele que se aproximou quase vazio fosse o último. Levantei-me e mais uma vez pedi que eles fossem embora, mas Duda fez um gesto de desdém e Aurélio parecia inclinado a acompanhá-lo até o fim do mundo. Embarquei no coletivo certo de que jamais voltaremos a nos ver, então permiti que eu sentisse saudades ainda ali, alguns segundos depois de deixá-los.

Ao chegar a casa, meus irmãos, mãe e namorado me aguardavam em virtude de meu aniversário. Apesar de estar na companhia de pessoas que me amam e que zelam por mim, não consegui me sentir seguro, acolhido ou querido. Não ousei me sentir bem enquanto Duda e Aurélio permaneciam lá fora, quase meia-noite, à espera do dinheiro que não indenizaria o abuso que, novamente, sofreriam. Não me atrevi.

Desde aquele dia procuro tomar mais cuidado ao olhar para as pessoas. É preciso sensibilidade, acuidade e disponibilidade para que não julguemos os outros baseados apenas em nossos preconceitos e limitada percepção da realidade. Aurélio e Duda não eram assustadores, são tão humanos quanto qualquer um de nós. A única coisa que nos torna diferentes é o fato de suas histórias terem sido mutiladas por pessoas cruéis, enquanto a minha é cotidianamente costurada por aqueles que me amam e respeitam.

Ainda me dói não saber onde eles estão e se estão bem. Como desejei naquela noite que aqueles dois meninos encontrassem não só o caminho de casa, mas o caminho.

 

 19/08/2014, terça-feira

 

 

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