CARTA A LEON TOLSTOI

09 de Novembro de 1910

Além-túmulo, Pós-vida

 

Mon majestueux lion;

                  

Tu já ouviste falar a meu respeito, mas não sabes quem sou. Quanto a mim, a ti conheço bem desde que nasceste, pois transcendi minha própria inexistência naquela mesma terça-feira chuvosa na qual vieste ao mundo. Tornei-me consciente de minha substancialidade através do enfadonho propósito de acompanhar-te à distância por toda a tua vida. Pretendia apresentar-me como tua ama e criada apenas em teu derradeiro dia sobre a face da Terra, mas não consegui desempenhar com excelência a tarefa que é parte importante de meu trabalho: esperar. 

 

Liev, sou tua Morte. Sim. Tua. Sabias que há uma morte específica para cada leva de homens? Pois bem. Há uma morte para os cristãos, outra para os anarquistas, uma para os escritores, há aquela que se destina aos homens que anseiam por uma vida simples, como também existe uma morte que diz respeito unicamente aos meninos crescidos que jamais ousaram fugir de casa. Bem, como tu cometeste a ousadia e a irresponsabilidade de ser tantos homens em um só, há uma morte somente para ti, que sou eu.

 

Cometo uma grave transgressão ao escrever-te esta carta. O mais adequado seria que somente nos conhecêssemos no dia de teu passamento, mas as circunstâncias levaram-me a quebrar as regras universais que regem o findar da permanência de todas as coisas vivas neste mundo e a cometer a indelicadeza de apresentar-me antes de partirmos para o outro lado, aquele do qual viemos um dia.

 

Eu não deveria ter lido teus textos, Liev! Como pude ter sido tão desastrada e inconsequente? Mas, o que eu poderia ter feito? Estava entediada. Caso eu fosse a morte destinada aos famintos, ocupar-me-ia do Corno da África, espantando moscas do rosto imberbe de crianças carregadas por meus certeiros braços. Se minha função fosse a de ceifar a vida dos hipócritas, tomaria vodca com os bajuladores de Nicolau II no Kremlin, gargalhando de seus achaques e impropriedades antes de levá-los ao mal súbito ou ao entalo fatal. Todavia, apenas por ti aguardo. Tu: razão de minha inquietação e teimosia. Eu não deveria ter lido O Diabo e Outras Histórias. Mas, o que poderia ter feito? Resisti bravamente por 52 anos à tentação de folhear as páginas de Três Mortes, conto que eu julgava ter sido composto em minha homenagem. Como fui tola. Ali celebras a vida. Mesmo que em sua fragilidade, mas é à vida que tu enalteces na expressão impotente e malévola da nobre senhora que morre à espera de remédios caseiros aos quais ela atribuía qualidades miraculosas. É à vida que tu festejas nas mãos descarnadas e cobertas de pelo do cocheiro que troca suas botas novas por uma lápide. É à vida que enobreces nas folhas da árvore, antes viçosa e imponente, que tomba morta diante do triste pio da toutinegra e sob o poder do machado. A beleza poética ditada pela natureza é tão exuberante e pontual que, após debruçar-me sobre a leitura de teu fabuloso texto, tornou-se obsessiva a necessidade de saber-me viva ou não. 

 

Viver seria-me realmente impossível? Quem sabe eu seja como tua Anna Karenina, e talvez te assemelhes ao impetuoso Conde Vronski, pois, como fez ele à amada, tu também me livraste do vazio. Trouxeste-me, mesmo sem querer, ao mundo para que eu um dia te conduzisse à cessação de teus dias. Por ironia, foste tu que me levaste a uma profunda e íntima reflexão acerca da vida e sobre o que ela tem a nos oferecer de transformador.

 

Preciso encontrar-te, Liev. O curso da história de tuas personagens sempre me pareceu uma cruel negação de qualquer livre-arbítrio. Sinto-me como se eu também não tivesse vontade alguma, atada ao destino de esperar pelo dia em que tua carcaça não suportará mais a rebeldia de tua alma, Grande Velho.

 

E, quando eu levar-te  embora, Liev? Morrerei contigo? Haverá uma morte para mim? E se houver, significará que por todo este tempo estive viva, sem me dar conta? Ai, estes questionamentos trazem-me aflições avessas ao comportamento de uma dama que deveria ser fria e imparcial, que tem por obrigação aceitar seu destino como se este lhe fosse um esposo rígido e intransigente.

 

Estarei na Gare de Astapovo por todo o dia 20 de novembro. A estação é um lugar tranquilo, bom para observarmos a vida ir e vir. Quando não estou pajeando-te, é para lá que vou a fim de ler teus escritos, confortavelmente sentada naqueles velhos bancos lustrosos.

 

Fuja desta vida que não te serve e desta mulher fútil e detestável que te enerva dia e noite. Venha ao meu encontro, pois aprendi através da melancolia de teus livros que nunca é tarde para um arrobo juvenil.

 

Após conversarmos sobre minhas inquietações e incertezas, caso assim queira, braços dados, tu e eu, partiremos de lá.

 

 

Tua Morte

 

 

Emerson Braga

17/01/2013, quinta-feira

Comments: 1
  • #1

    edson braga (Monday, 06 November 2017 12:17)

    Uallll... intrigante. Deu para imaginar o nó na garganta... não de Liev, mas da morte.