CARTA A ANA CRISTINA

 

CÉSAR

26 de março de 2006

Rua Maranhão, nº 270, Edifício Diana

Higienópolis, São Paulo – SP

 

Poeta incompreendida e marginal;

 

Escrevo esta carta do escritório de meu apartamento. Aqui do alto é tranquilo, a cidade parece mergulhada em um líquido leitoso, mas ainda consigo escutar ao longe a pressa dos carros que lá embaixo se movem agressivos, ansiosos por dar mais uma volta neste labirinto no qual todas nós estamos enclausuradas. Ao menos para mim, a tortura acabou. Hoje, graças a você, eu encontrei uma saída.

 

Ana Cristina, jamais nos conhecemos pessoalmente. Mas, em 1979, um colega de teatro ― que havia estreado no Rio de Janeiro a peça Rasga Coração ― trouxe-me de presente um texto mimeografado, que recebera das mãos de outro ator enquanto bebiam em um bar famoso de Copacabana. Lembro com clareza de cada verso, pois aquele poema me marcou para sempre:

 

“olho muito tempo o corpo de um poema

até perder de vista o que não seja corpo

e sentir separado dentre os dentes

um filete de sangue

nas gengivas”

 

A notícia de sua morte causou-me uma forte impressão naquele outubro de 1983. Aliás, odeio outubro! Há 18 anos, este mesmo mês arrancou-me o grande amor de minha vida. Desde então, tornei-me a Medeia de um Jasão ausente. Quando enviuvei, as pessoas lamentavam por eu não ter gerado filhos que me fizessem companhia e que fossem, talvez, capazes de aplacar minha dor. Aqueles que me desejam o melhor e que pensam ajudar com sua irritante compaixão nada sabem sobre minha decisão de terminar em mim. Não me parecia justo que eu espalhasse sobre a Terra cópias de carbono de minha angústia. Não me tornar mãe foi meu filicídio altruísta. Filhos? Matei-os antes de concebê-los. E o fiz a fim de salvá-los, pois uma descendência parida de meu ventre inclinado a histerias da alma não suportaria viver neste mundo equivocado. E, se o conseguisse, o faria sob o efeito de uma dor enlouquecedora. O que eu não queria.

 

Você ainda era uma menina quando decidiu ancorar seu navio no espaço, Cristina. No ano anterior, havia lançado seu último livro, o primeiro a ser publicado por uma editora. Eu estava lá. Observei o frenesi dos presentes e constatei com tristeza que a euforia geral era uma ofensa ao completo estado de isolamento em que a escritora Ana C. ― encarnação pública da reservada menina da rua Tonelero ― se encontrava. Não tive coragem de pedir que você autografasse meu exemplar, pois se encontrava blindada pela solidão que cingia seus arredores como um cão feroz. Decidi levar o livro para casa e que apenas o leria quando a vida se encarregasse de tatuar-lhe o prefácio com sua dedicatória. Mas não tive a oportunidade. Seu enfado foi mais ligeiro do que minha vontade de ter sua caligrafia conduzindo-me o ritmo da leitura.

 

Ana Cristina, também sofro de saudades maiores que a vida. São ausências que perturbam meu sono, abarrotam-me de pesadelos mesmo quando estou acordada. Tento controlar meus pensamentos, mas a ebulição das ideias sombrias que me assaltam parece bem mais real do que o carinho dos amigos e o amor que tenho por meu trabalho como atriz. Você aceitou muito cedo o mudo convite da morte. Creio que resisti por tempo demais ao mesmo chamamento. Estou cansada. Preciso pisar no impisável. Sinto sob meus pés o chão de sal grosso e ouro, que se racha. Não resistirei mais, Ana Cristina. Minha queda agora me parece inevitável. Sinto que, muito em breve, desabarei ao seu lado.

 

É bem provável que minha irmã e meu sobrinho fiquem enciumados, afinal, como aceitarão que minha última carta tenha sido escrita para alguém que nem sequer conheci? Acho que lhes devo uma explicação e creio que você também merece entender minhas razões.

 

 

Hoje, logo após o café da manhã, desesperada, corri até meu escritório em busca de algum livro que fosse capaz de explicar e abrandar aquilo que, há anos, me esgarça por dentro. A Teus Pés saltou da estante como a virgem que pede ao amado para ser deflorada antes que ele parta em viagem epopeica. Sentei-me confortavelmente em minha poltrona de leitura e desvirginei as páginas que eu havia negligenciado por puro capricho.

 

Seus planos polifônicos e sua sedução poética desvelaram-me a mulher que eu era, e que preferi não ser. Ai, suas instruções de bordo, seus arpejos! Havia tanto humor, tanta graça, e eu que pensava que você era apenas tragédia. Há anos eu não ria com prazer, é verdade. Mas teus versos desmontaram minha angústia aos poucos e, paradoxalmente, me aproximaram da certeza que agora me guia e que força nenhuma no universo de mim irá demovê-la.

 

Eu só não esperava que, justo na última página, eu encontrasse aquilo que por duas décadas me impedira de ler seu livro: Uma dedicatória. Em que momento daquela noite de autógrafos você pegou um exemplar qualquer e nele escreveu a inscrição clandestina? Justo aquele que apanhei dentre seus iguais e esqueci na estante por tantos anos! Da prateleira, sua caligrafia aguardou por meus olhos, mas eu andava cega. Agora, graças à dedicatória e aos versos escritos para ninguém ― este ninguém que, mesmo sem que você tivesse a intenção, eu me tornei ―, sinto como se realmente enxergasse.

 

Obrigada pela graça de seus cadernos terapêuticos, pavão azul. Despeço-me ansiosa, pois em breve nos encontraremos. Através das cortinas que me convidam, acabei de assistir ao pôr-do-sol. É melhor que eu não me estenda mais, pois minha própria janela me espera. Porém, antes que eu voe da Gólgota a Cólquida, antes que eu desista da cruz e abrace o velo, destruirei este livro. Afinal, as palavras nele escritas em segredo só dizem respeito a mim.

 

Esta carta e o gesto que se seguirá a ela são uma sincera resposta àquilo que você perguntou em sua dedicatória. Hoje cedo, deixei com o porteiro do prédio os contatos telefônicos de meus familiares, caso algo me aconteça. É chegada a hora de acontecer. Nossa correspondência, Ana Cristina, finalmente, faz-se completa. Em instantes estarei caída, a teus pés.

 

Ariclê Perez

 

Nota do autor: Ariclê Perez jamais escreveu esta carta. Trata-se de uma obra de ficção ─ inspirada na tragédia que marcou o fim da vida de duas grandes mulheres ─ para denunciar os males da depressão e tentar, mesmo que minimamente, fazer com que as pessoas reconheçam-na como a doença devastadora que, de fato, é. 

 

Emerson Braga

 

26/10/2015, segunda-feira

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