3ª CARTA – DESAFIOS DOS ESCRITORES – CARTAS RUSSAS

 

Anton Tchecov, foi um médico, dramaturgo e escritor russo, considerado um dos maiores contistas de todos os tempos.Em sua carreira como dramaturgo criou quatro clássicos e seus contos têm sidos aclamados por escritores e críticos. Tchecov foi médico durante a maior parte de sua carreira literária, e em uma de suas cartas ele escreve a respeito: "A medicina é a minha legítima esposa; a literatura é apenas minha amante."

 

Inspirado por esta declaração, escrevi no Desafio dos Escritores - CARTAS RUSSAS, o texto epistolar que segue.

 

17 de outubro de 1898

São Petersburgo, CCCP

 

 

Caro esposo;

 

Confesso: Não sei como iniciar esta carta. Tenho a cabeça repleta de fastios e um pouco encharcada pelo efeito da taça do vinho almiscarado que pende dentre meus trêmulos dedos; enquanto a outra mão deseja escrever-te como se fosse teu mais profundo desejo receber notícias minhas. Estou indisposta, mas não pretendo exagerar os sintomas que, deveras, sinto. Uma apatia, uma onda de calor que me deixa a face enrubescida, talvez mais vertigens do que precise sentir uma mulher olvidada por seu senhor. Não, não quero preocupar-te. Teu intelecto possui ocupações demais, não quero enervar-te com as miudezas de minha alma ou pesares de minha falta de vigor físico.

 

Não creio que me aches feia ou desinteressante, Anton. Percebo que ainda me queres como no dia em que me desposaste. Éramos tão belos e tão jovens. Tu, um médico recém-formado; eu, a musa inspiradora de teus elixires e bisturis. Em que época de nossas vidas eu me transformei em mera espectadora de teus deslizes, marido? Que desgraçada tornei-me. Poderia eu ter contraído matrimônio com um homem de carne e osso, mas acabei levada pelos ardis de minhas emoções e troquei alianças com esta interrogação metafísica chamada Tchekhov.

 

O começo de nossas vidas foi tortuoso, tínhamos escassez de dinheiro e fartura de débitos. E tu, corajosamente, insistias em atender os desvalidos sem cobrar-lhes os rublos que eles não possuíam, como fazem teus colegas de profissão. Admira-me que este homem, capaz de gestos de altruísmo que ribombam nas abóbadas celestes, seja o mesmo que me reduziu a quase nada. Há dias que mal como ou durmo, debruçada sobre cartas que não sei escrever. Sinto-me fraca e a solidão há de asfixiar-me caso não venhas a meu encontro suplicar pelo perdão que te ofertarei sem improfícuas cerimônias.

 

Recebi das mãos do senhor Mikhail Menchikov uma cópia de teu conto, Ionich. Que tédio! Que maçada! Já disse que não aprecio tuas narrativas. O que fazem teus amigos? Riem de mim? São eles uns tolos soberbos que se julgam deuses pelo poder de suas penas! Um deus eras tu, senhor, quando auscultava teus pacientes, antes de viver às voltas com fábulas e metáforas. Amaina-te que não usei de aspereza com o teu companheiro, pois bem sei que ele não frequenta a esbórnia que os escritores promovem naquele bordel que Literatura, tua escandalosa amante, chama de casa. Não sabes como me sofrem os dedos pelo simples gesto de escrever o nome daquela detestável mulher.

 

Desculpe-me os rompantes. Logo eu, que sempre fui clínica e metódica, a esbravejar como uma doidivanas. É a febre, meio que ando temerária. Mas, avia, esquece-me. Como estás de saúde? Tiveste aquela hemorragia nos pulmões, pioraste muito após a morte de teu pai. Espero que os ares de Ialta estejam a cuidar de ti como eu faria, bem sabes como tua saúde sempre me foi mais cara que teu afeto. Como estão as árvores que plantaste? E os cães, ainda muito ariscos? Conta-me também de tua mãe e tua irmã, ainda ralham muito com o senhor Gorki? Não quero que satisfaças estas minhas curiosidadezinhas através de cartas ou telegramas, prefiro que venhas a São Petersburgo visitar-me. Bastar-me-á pedires com atenção e carinho que eu parta contigo e estaremos em Ialta antes que as criadas deixem a camarinha a meu gosto. Mas apenas viajes a fim de buscar-me se tiveres condições de fazê-lo, afinal, não gostaria de agravar-te os males respiratórios que te enfermam.

 

Anton, percebo em todas as cartas que me envias, o respeito e a consideração que nutres por mim. Mas não compreendo a razão pela qual nenhuma delas convida-me para o aconchego de tua presença. Sinto-me como se fosses casado com a outra e não comigo. Então é assim? Literatura, a dama dos saraus que te combalem, é tua nova senhora? E eu, o que sou? Por acaso, uma morta? Será que não sirvo mais para nada? Logo eu, que salvei vidas a teu lado? Lavei escaras, sarjei pústulas. Não enviuvaste, Anton! Sou a senhora dos unguentos que te curam, dedicada, paciente e secular em minha existência, esposo. Tua concubina não passa de uma debutante tresloucada e repleta de demências.

 

Como podes jurar que me amarás pelo resto de teus dias, que sempre serei tua mulher, enquanto manténs tu a amante sob os bordados e franzidos da colcha de nossa cama, a ladra que transformou o meu Dr. Tchekhov em um inconsequente contador de histórias? Tua letra, antes sóbria, a elaborar bulas e receitas medicamentosas, agora se entrega ensandecida às frivolidades da criação. Quando estás a escrever, marido, torna-te um autômato despido de consciência e vontade.

 

Não entendo, senhor. És um homem da razão e das ciências, em tua fronte reluz o esplendor da sensatez. Por que te entregaste aos caprichos daquela prostituta, daquela puta de Camões? Literatura não passa de uma lésbica a deitar-se lépida e a dizer motejos dentre os seios de Jane Austen, sujos de ironia e tinta negra. Meretriz! Maldita mulher-dama deste inferno chamado prosa e poesia! Amaldiçoo o dia, Anton, em que tua alma fora tocada pelas letras.  

 

Não percebes? Nasceste com o propósito de orquestrar-me, a mim, que sou uma mulher realista e pragmática; e não com o fim de entregar-te à pândega e estroinice para as quais Literatura te arrasta, com um simples aceno libidinoso e sensual. Mulher vil! Ardilosa! Mefistofélica! Se não te decidires por mim, Anton, a solidão há de consumir-te. Hei de ver-te apodrecer sobre mil papéis em branco ao lado do corpo nu de tua hiperbólica amásia.

 

Ai, marido! Não quero estar sozinha. Prometeste zelar por mim sob a benção de Deus. Tens a esposa perfeita, Anton, que cuida de ti e de teus enfermos, que não possui companhias extravagantes capazes de corrompê-la com frivolidades. Ou seriam Dança e Música, aquelas rameiras amigas de Literatura, mais decentes que eu? Por que preferes a companhia desta mulher que te deixa doente, alienado e insano, Anton? Pensas que não falam de ti, sempre às voltas com estas malditas peças, estes detestáveis livros de Turgueniev e Goncharov, a devorar estes mortos? Todos sabem de tua infidelidade, maldito e amado senhor. Todos sabem que te deitas com cadáveres literários e personas imaginárias.

 

Alcanças o que apressou minha partida para São Petersburgo, Anton, além de teu mau passo? Sempre que eu saía à rua e atravessava a praça de Ialta repleta de casais enamorados, um rapaz galhofeiro apontava-me e gritava trocista: Segue solitária a mulher do médico, enquanto o doutor Tchekhov leva seus doentes ao teatro e não ao ambulatório. Riem de ti, desgraçado marido!

 

Perdoa-me. É Literatura. É a febre.

 

Sei que ela aguarda-te em Taganrog e que tu pretendes encontrá-la assim que melhorares dos pulmões. Trocaste-me por sonetos e contos de escárnio, Anton. Substituíste-me por uma amante bêbada. Mas ainda há esperança. São Petersburgo ou Taganrog, marido? São Petersburgo ou Tangarog, esposo? Tiveste uma infelicidade em São Petersburgo com tua peça A Gaivota. Não faça com que agora eu tenha a minha, senhor.

 

P.S.: Nunca mais repita que escrevo como uma poetisa. Literatura talvez aprecie esses gracejos. Eu não.

 

Sua esposa, Medicina.

 

 

Emerson Braga

21/11/2014, sexta-feira

 

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