1989, O ANO EM QUE RENATO RUSSO ME SALVOU

Um avião desparece na Floresta Amazônica, as primeiras eleições presidenciais diretas são realizadas, Fernando Collor de Mello é eleito o 32° presidente do Brasil, os sequestradores do empresário brasileiro Abilio Diniz se entregam, o Bateau Mouche naufraga, cai o Muro de Berlim, morrem Raul Seixas, Salvador Dalí, Dina Sfat, Nara Leão, Lauro Corona, Aurélio Buarque de Holanda e Betty Davis.

 

Os anos 80 terminavam no exato instante em que eu começava. Pela primeira vez me vi apaixonado. E não era por uma menina.

 

O objeto de minha paixão era um clichê de olhos verdes e sorriso lindo. Quando não nos encantava com as cordas de seu violão, fazia acrobacias com a bola na quadra da escola. Era nosso melhor jogador de futebol de salão. Creio que quase todos no colégio, de um modo ou de outro, o amavam. Apenas segui a onda. Gostaria de contar aqui algo fora do comum, extraordinário, mas as paixões adolescentes pouco têm de original em sua forma e em seu conteúdo. Somos todos muito parecidos quando perdidos no limbo entre a infância que não queremos mais e a maturidade que rejeitamos por não querermos ser como nossos pais.

 

Não poder falar sobre o que eu sentia fez com que eu me pegasse tão angustiado quanto apenas um homem adulto deveria se sentir. Eu chorava tanto! No banheiro da escola, no quintal de casa, sob os lençóis. Chorava porque o silêncio doía. Enquanto todos na novela Top Model extravasavam os sentimentos, falavam abertamente sobre seus amores, eu escondia o meu nos cadernos em que escrevia meus primeiros contos mais elaborados, diluindo a figura quase heroica do objeto de minha paixão em diversos personagens, a fim de que meus amigos não o identificassem.

 

Estudávamos na mesma sala, mas pouco nos falávamos. Sempre que ele me cumprimentava com o olhar ou me dirigia a palavra com aquela voz de cantor de barzinho, eu inventava a possibilidade da recíproca, fantasiava diálogos em que eu o surpreenderia com a desfaçatez exacerbada que eu jamais possui. Sonhei durante todo o ano de 1989 que, quando deixássemos a 8ª Série, cursaríamos o  2º Grau juntos, em uma outra escola, onde não seríamos apenas os novatos, mas “aqueles dois caras que não se largam por nada”.

 

Nas provas finais daquele ano, ele me pediu ajuda em Português. Estudávamos à tarde e eu passava as manhãs sozinho em casa. Deveria ter sido a ocasião perfeita, se as coisas fossem tão fáceis como na televisão. Acreditei realmente que eu teria o meu momento. Os livros teriam de esperar. Pois, naquela manhã, eu estava decidido a ganhar meu primeiro beijo.

 

Sentado sobre o tapete da sala, os cadernos atirados sobre a mesa de centro, começamos a estudar. Eu pouco me concentrava, distraído com o cheiro daqueles cabelos fedidos a suor, distraído com as sobrancelhas franzidas pelo olhar que não conseguia diferenciar um adjetivo de um substantivo, distraído com aquele jeito de quem é capaz de atravessar um campo de batalha sem se dar conta da guerra ao redor. Depois de muito adiar, estiquei minha perna e toquei a dele por baixo da mesa. Por quatro ou cinco segundos, ele permitiu o contato íntimo e, logo em seguida, recolheu o joelho. Com uma interrogação no olhar, me encarou e bateu a caneta entre os dentes. Aguardei por seu veredito. Aguardei para que ele me julgasse por meu gesto calculado. Mas o que veio depois foi ainda pior. “Tô namorando”, disse-me assim, do nada, como se soubesse o que se passava e tentasse descobrir até onde eu iria com meu amorzinho reprimido. “Ela é muito gata, tirou o primeiro lugar num desfile no colégio dela”. Senti vontade de chorar. Mas não o fiz. Voltei para as orações subordinadas e tentei, inutilmente, esquecer que eu o amava.

 

No final daquele ano, fui ao aniversário de 15 anos de uma amiga e tomei meu primeiro porre. Fiquei muito, muito bêbado. Ele estava lá, de mãos dadas com sua namorada. Apresentou-me à menina que me sorriu como se não estivesse interessada em conhecer o garoto alcoolizado, e depois a beijou, ali, na minha frente.

 

Fui embora. Lembro-me de ter chorado enquanto tropegava e de ter falado muito sozinho até chegar em casa. Minha mãe brigou meio rindo por eu ter bebido e mandou que eu fosse tomar um banho. Foi aí que me veio à mente embotada de álcool a perigosa ideia. Ali mesmo, no armário do banheiro de minha casa, eu tinha a ferramenta necessária para dar fim a tudo aquilo, àquela dor que, nos meus 13 anos de idade, eu julgava insustentável. Ah, os dramas juvenis! Então, enquanto uma grande merda passava por minha cabeça, escutei pela primeira vez Andrea Doria, do Legião Urbana. Eu ainda não curtia a banda brasiliense, mas meus irmãos adoravam. Sentei-me no chão do banheiro, bêbado, ferido, chorando pra caralho... Foi aí que Renato Russo cantou “Quero ter alguém com quem conversar. Alguém que depois não use o que eu disse contra mim.”

 

Ouvir aqueles versos foi o mais perto que cheguei daquilo que os cristãos chamam de milagre. Saber que outro ser humano partilhava da mesma angústia que eu foi libertador, foi acolhedor, foi como se um novo e melhor amigo me pedisse para que eu aguentasse firme, pois tudo terminaria bem ― infelizmente as coisas não terminaram bem para ele.

 

Depois da ressaca terrível, passei a escutar o álbum Dois quase todos os dias. Troquei minha paixão platônica pela rebeldia adolescente. Não precisava mais que o mundo me compreendesse ou me aceitasse, eu queria mesmo era que ele explodisse! Aos meus olhos, o cara pelo qual eu havia passado um ano inteiro apaixonado havia se tornado um sujeito banal, e eu não suportava mais pessoas banais. Também não seria uma delas.

 

Renato Russo me salvou da maneira obtusa e solitária com a qual eu via minha própria vida. E, a cada canção que eu ouvia em Que País É Este?, As Quatro Estações, O Descobrimento do Brasil, A Tempestade, e em todos os outros álbuns, mais eu entendia o porquê do nome Legião Urbana. Nos grandes centros, nas grandes cidades, há quartos trancados em que os adolescentes travam brigas solitárias contra aquilo que são e contra a realidade que os cerca e os encurrala. Ganhar ou perder essa batalha é o ponto alto de nossas vidas antes de nos tornarmos adultos. E, uma das maneiras de vencermos, é descobrindo que não estamos sozinhos, que há outras pessoas angustiadas pelo mundo e que, se nos conectarmos a elas, formaremos uma legião de enjeitados, prontos para conquistar espaços nesse mundo tão vasto e tão claustrofóbico. É justamente aí, quando nos solidarizamos com a dor do outro, essa dor que tanto se parece com a nossa, o exato momento em que as navalhas no banheiro perdem o fio e deixam de ser uma ameaça.

 

Emerson Braga

23/11/2017, quinta-feira

Comments: 4
  • #4

    Gina Girão (Thursday, 23 November 2017 11:12)

    Peste!!!! Li isso ouvindo sua voz, sabe? Cada entonação, cada nuance! Que crônica porreta!!!

  • #3

    Lunna (Thursday, 23 November 2017 11:00)

    Quando a escrita vai te falando coisas com as quais conviveu sempre através do outro... e você vai passando as páginas e compreendendo os ritmos de vida, de arte. Grazie

  • #2

    Edson Braga (Thursday, 23 November 2017 10:01)

    "Vem comigo procurar um lugar mais calmo, longe dessa confusão e desse gente que se respeita, tenho quase certeza que eu não sou daqui..."

  • #1

    Marco A (Thursday, 23 November 2017 09:09)

    Espetacular! Ah, como eu me identifiquei com tudo isso...