REDES SOCIAIS: O PARAÍSO DO SENSO COMUM

 

Todos os dias, o tempo inteiro, reverbera na internet um clamor que exige justiça em todas as esferas. Seja no âmbito político ou econômico, em questões que versem sobre segurança e corrupção, enfim, todos parecem ter se transformado em bastiões da ética, da moral e da lisura. Mas, que tipo de justiça realmente vem sendo exigida nas redes sociais?

 

Para os grandes políticos, empresários, empreiteiros, magnatas e lobistas ― maiores defraudadores e grandes responsáveis pelo sucateamento de toda a máquina pública ― as pessoas clamam por julgamentos e condenações que tramitem no âmbito da lei. Muitas vezes, sequer sabem o nome de ao menos um dos envolvidos nos muitos escândalos financeiros explorados pela grande mídia. Apenas se unem ao coro insano, vestidos de verde-e-amarelo e cantando o hino nacional, enquanto aberrações (como o saudosista apego ao regime militar) viajam na boleia desta cruzada nacionalista estúpida e repleta de lugares sombrios.

 

Já a outra justiça, aquela invocada para punir criminosos comuns, essa exige a precariedade de direitos arduamente conquistados para que se faça valer. Todos querem o achaque público, a humilhação, os pontapés, pauladas, linchamentos e imolações. O Código de Hamurabi ― lei de direito primitivo, que há pouco tempo era vista por nossa contemporaneidade como uma prática legal bárbara ― agora nos parece uma resposta lógica para o incômodo causado por entes anônimos, fantasmas sociais, cuja carreira no universo do crime começa muito cedo: Assim que nascem.

 

 Para o pobre favelado, não há julgamentos, mas condenações e execuções sumárias. Antes, os desfavorecidos eram atacados apenas pela truculência do braço armado do estado, representado com sádica competência por nossa polícia militar. Porém, hoje, a classe média (aquela classe média que vê na "meritocracia" o único parâmetro para justificar a ascensão social, como se o Estado proporcionasse igualdade de condições a todos) ― tomada de uma sanha de cachorro raivoso que apenas late para pequenos arbustos e não para sumaúmas ― tornou-se conivente com a aplicação de penas comunitárias, cessação dos direitos sociais já conquistados e toda a sorte de retrocessos da pior espécie. Estão satisfeitos com a possibilidade delirante de um novo estado totalitário, que garanta a manutenção de suas taras religiosas e moralidades obtusas. São pessoas que soltam alvas pombas e salvam do aborto fetos incapazes de sentir dor, ao passo que condenam ao pior dos destinos aqueles que já nasceram estigmatizados pela própria condição.

 

Mas o vigilante da moral se defenderá, dizendo: “A lei tem que ser a mesma para todos! Não pode haver leis que privilegiem negros, homossexuais e outras minorias!”. Não é um privilégio ser reconhecido e tratado como os demais. É um direito.

 

Uma legislação que trate todos da mesma forma talvez funcione em uma sociedade igualitária, o que não é o nosso caso. No Brasil, as leis apenas atendem (quando atendem) aquilo que é pleiteado pela maioria (entenda-se por maioria aqueles grupos seletos que têm maior quantidade de direitos adquiridos). Já as minorias (grupos que não se beneficiam ou se beneficiam precariamente das leis que protegem os interesses da maioria) vivem em estado de polícia, tendo suas cidadanias violadas e mitigadas constantemente, o que faz com que seus direitos sejam regidos por discriminação e não pelo princípio da igualdade.

 

É ridículo falar em traficantes apenas olhando para as favelas, quando eles também estão nas alphavilles e condomínios de luxo. Há assassinos tanto nas periferias quanto nos bairros nobres. Roubo, corrupção, crimes hediondos, sadismo e vilania são praticados por sujeitos diversos em todas as classes sociais. Então, por que apenas os menos afortunados, geralmente de cor negra, lotam as cadeias? Enquanto os brancos e “bem-nascidos” que também praticam os mesmos delitos merecem gozar, em liberdade, de uma segunda chance?

 

Como exigir, por exemplo, diminuição da maioridade penal em um país que, sabidamente, dará diferentes destinos aos jovens infratores? Para uns poucos: A clínica de reabilitação. Para todo o restante: cadeia, tortura e esquecimento.

 

Se um jovem de posição social privilegiada mata um mendigo a pauladas, a opinião pública clama por justiça, mas discretamente, sentada em seu sofá enquanto formula (pré)conceitos diante da tevê. De repente, surgem discussões sobre o risco das drogas, o vazio existencial dos adolescentes, a necessidade de um tratamento que o resgate da violência e devolva-o ao seio da família que o ama.

 

Todavia, suponhamos que este mesmo mendigo tenha despertado após o primeiro golpe e, por puro instinto de sobrevivência e legítima defesa, levado à morte seu jovem agressor. Que destino teria ele? Que manchetes seriam noticiadas? E que julgamentos de valor seriam feitos? No modelo social que nos é imposto, o menino branco e de “boa criação” nunca será um suspeito. Para ele, sempre, sempre e sempre, haverá o benefício da dúvida. Buscaremos o delito em seus olhos e apenas enxergaremos a vítima, criatura angelical, ferida ao sair da proteção da bolha que o apartava e protegia de todos os males do mundo.

 

A justiça, assim, torna-se cega de apenas um olho. Este ignora a existência de delitos praticados pelos que tem poder de compra. Já a outra vista, a que enxerga (mas é preconceituosa e inquisidora), detém-se como um deus vingativo sobre os que vivem de sobejos. Os boçais defensores deste tipo de justiça escutam o galo cantar e, mesmo sem saber aonde, correm para seus notebooks, smartphones e PC’s a fim de disseminar sua raiva medieval. Transformam as redes sociais em púlpitos de onde vomitam suas reivindicações pautadas por ignorância, desinformação e sentimentos de vingança. Idiossincrasias viciosas tornam-se a única base para justificar julgamentos que se flexibilizam de acordo com a pele e a condição social dos supostos malfeitores.

 

Chamam, com os dentes trincados, de “bestas politicamente corretas” àqueles que defendem os direitos humanos. Hoje, quem não aplaude o linchamento de um assassino é acusado de compactuar com o crime por ele praticado. Ignora-se que, ao pagarmos na mesma moeda, ao revidarmos nosso sofrimento com sadismo, perpetuamos um ciclo de violência que nos arrastará de volta aos velhos tribunais da inquisição, nos quais livres pensadores eram tratados como criminosos passíveis de pena capital.

 

O senso comum masturba-se satisfeito dos impostos que paga religiosamente, regozija-se das missas que frequenta para a consagração de seus egoísmos, compraz-se dos filhos e filhas que educa para serem homens adúlteros e esposas servis.

 

Para o senso comum, conquistas sociais históricas nada significam. Vale apenas a manutenção desta ordem feita para sustentar o fantasioso estado de graça de uns poucos; em detrimento de múltiplas e diversas realidades excluídas, que nada sabem da paz, da bonança, da segurança ou do luxo que tanto ameaçam com suas caras de fome. Todos fedidos. Todos feios. Do outro lado dos muros e das leis que protegem os ditos “cidadãos de bem”, há um país inteiro no exílio.

 

Para o senso comum que vigora nas redes sociais, nos fóruns de discussão e nas salas de bate-papo, a dignidade humana de nada vale. O que importa é a sustentação da crença equivocada de que ele (o senso comum) está lutando por um país melhor. Melhor para quem? E aqueles que não se enquadrarem neste sonho ufanista? O que lhes será destinado? As “benesses” de sempre? As calçadas invisíveis? As páginas policiais? As celas superlotadas de nossas cadeias? Os livros de História, que encherão de vergonha e horror as futuras gerações?

 

O senso comum não quer diálogo. Pois diálogos são baseados em argumentos, cobram de cada uma das partes, em igual proporção, disposição para ouvir, sensatez ao falar e ponderação ao tirar conclusões.

 

De modo leviano, o senso comum resiste a uma visão mais holística e menos intolerante sobre os fatos, as pessoas e as coisas.

 

Cansei de ouvir: “Está com pena do bandidinho? Leva ele pra tua casa”.

 

Não se trata de piedade. É uma questão de justiça social.

 

Pena, pena mesmo, pena de verdade, eu tenho de quem posta em sua página no facebook ― junto de fotos de família, cãezinhos fofos e mensagens de autoajuda ― a seguinte máxima: “bandido bom, é bandido morto”.

 

E a morte de todos os bandidos, de todos os que não andam na linha, de todos os indesejáveis, de todos que se revoltam contra a própria miséria? Afinal, a morte de todos eles transformaria seus executores e os que são convenientes com seu extermínio em quê?

 

Deus, eu que em ti não creio, peço-te: Livra-me da salvação imposta por teus santos justiceiros.

 

Emerson Braga

 

 22/04/2015, quarta-feira

Comments: 4
  • #4

    Ângela (Monday, 04 May 2015 10:20)

    Meu primo quanta sabedoria em suas palavras. Cada vez mais te admiro. Como queria por através da escrita certos pensamentos tão comuns aos teus, mas não tenho o teu poder. Ainda assim me sinto representada por ti. pelas tuas verdades, pela tua sensibilidade. Obrigada querido, por falar das dores dos desvalidos e dos injustiçados socialmente. Que o Deus que também não creio ( embora às vezes clame por ele) e vocẽ também, continue te dando voz e vez de falar pelos esquecidos....

  • #3

    Gina Girão (Thursday, 23 April 2015 09:28)

    Onde assino também esse texto lúcido e absolutamente necessário? <3

  • #2

    Denise Andressa (Thursday, 23 April 2015 08:05)

    "O senso comum não quer diálogo. Pois diálogos são baseados em argumentos, cobram de cada uma das partes, em igual proporção, disposição para ouvir, sensatez ao falar e ponderação ao tirar conclusões."
    "Pena, pena mesmo, pena de verdade, eu tenho de quem posta em sua página no facebook ― junto de fotos de família, cãezinhos fofos e mensagens de autoajuda ― a seguinte máxima: “bandido bom, é bandido morto”."

    Pra mim essas duas frases resumem o que temos visto por aí. Comentei outro dia num post seu e não sei se passou batido ou foi ignorado, mas pra mim falta o tal meio termo.
    O negócio, Emerson, é que tudo virou briga de boteco; ninguém sabe mais pq está brigando. Cada lado, porque agora pra tudo tem que ter um lado, se agarra a conceitos prontos e os defendem de forma apaixonada, ilógica e violenta. Não existe meio-termo pra nada, e, sabe, pra mim o sucesso está, sim, no equilíbrio. Mas se defendo isso, apanho dos dois lados. Não é que eu seja "em cima do muro", é que acho que não há certos ou errados, há visões de vida e de mundo diferentes. É preciso parar de gritar para poder explicar e ouvir tb. É claro que há o indefensável. Existe os que agem com desfaçatez maldosa e hipócrita, fingindo uma ideologia que não abraça realmente. Manipuladores e esses devem ser rechaçados e combatidos. No entanto, acho que muito desse clima hostil, dessa sensação de "estado de guerra" vem da falta de disposição de todos os lados. Falta boa vontade. Diferenças, sejam culturais, ideológicas, religiosas, e tantas outras sempre vão existir. Nunca existirá consenso. Mas é preciso buscar soluções que atendam a todos, um meio-termo, coisa que, como já disse, não existe no Brasil.
    hahahahahaha... Cá estou filosofando. Mas sabe que o estudo da Filosofia faz tanta falta quanto o de História, né?! Beijos, moço talentoso, inquieto e adorável!

  • #1

    Marco A (Thursday, 23 April 2015 06:21)

    Excelente!!! Tudo o que eu escreveria, se tivesse o enorme talento que você tem.
    Redes sociais: o paraíso do senso comum cínico e hipócrita.
    Parabéns, Emerson, pelo texto e pela lucidez.