QUENGAS, RAIOS E QUERUBINS

 

Bem, como havia prometido a meu amigo Henrique Dal Bo Campanilli um conto baseado na história estapafúrdia que li em sua página no facebook, estou aqui para cumprir a promessa que começou a se desenhar na tarde de ontem, entrou pela madrugada e que, agora concluí. A suposta manchete tinha um delicioso cheiro de notícia criada, daquelas boas, que não tiram pedaço de ninguém... 

Segue o conto:

 

"Será como a destruição de Sodoma e de Gomorra, de Admá e de Zeboim, que o Senhor destruiu na sua ira e no seu furor."

Deuterônimo 29.23

 

            Deus é ruim de pontaria, Joelma – disse Maria Fernanda com meio sorriso nos lábios ao assistir mais uma de suas meninas deixar o Delícias de Iracema, melhor e maior puteiro de toda o litoral leste, marco sexual do município de Aquiraz – cidadezinha reconhecida como ícone geográfico da história do Ceará por ter sido a primeira vila da Capitania, criada por despacho datado de 13 de fevereiro de 1699 por ordem de El-Rei de Portugal.

 

            Desde o período colonial até os dias de hoje, pouca coisa mudou no comportamento dos homens daquelas bandas: Equilibram-se entre o sagrado e o profano tanto rapazes solteiros quanto bons pais de família que lá vivem, muitas vezes sem fazer a menor distinção entre um e outro. Há cabras que se confessam com putas. Há outros que dormem com padres. Resiste no meio masculino local uma excêntrica harmonia que põe as coisas carnais e as sagradas como destinadas ao mesmo fim. Para os cabras-machos de Aquiraz – ao menos no que toca a incessante busca do homem por satisfação pessoal – não importa muito se esta vem do comércio de indulgências ou da venda de lascívias.

 

            Porém, após a queda do raio que incendiou o telhado do Delícias de Iracema, suas animadas funcionárias e assíduos frequentadores, repentinamente, foram assaltados por uma súbita austeridade, repleta de rigorosos princípios cristãos. Apenas Maria Fernanda, dona do bordel e prostituta mais bem sucedida de sua geração, parecia imune ao sentimento de culpa que pairava sobre todos que trabalhavam em sua casa de diversão ou que frequentavam as alcovas do bem-querer e o bar de seu estabelecimento.

 

            A situação não estava nada favorável para a famigerada meretriz, que perdia mulheres boas quase todos os dias. Primeiro foi embora a Odete Baby, que resolveu voltar para casa e pedir perdão por ter se recusado a casar com um agiota e assim quitado uma dívida de jogo contraída por seu pai. A Bianca Perigo, antes de fugir durante a madrugada, disse à Sabrina Chambinho que havia desistido de abortar a criança que esperava de Dr. Aquicélio, teria seu filho em um convento e depois o entregaria para adoção. Já o Paulo Prensa largou seu trabalho de leão de chácara no cabaré e se tornou obreiro na Igreja Neopentecostal Renovação, onde ainda ontem o Mimi Ternura – que cuidava da faxina da casa – foi pedir ao Pastor Mário Pureza que tirasse o demônio de suas carnes e que lhe devolvesse a macheza subtraída desde o dia de seu nascimento. Pastor Mário Pureza... Este nome que passara a amargar na boca de Maria Fernanda mais que chá de alcachofra.

 

            O bordel e a igreja sempre mantiveram uma relação desrespeitosa, repleta de troca de maldições e impropérios. Nada que atrapalhasse o bom desempenho das funções de um ou de outro, principalmente porque boa parte dos homens que ajudava financeiramente a igreja era a mesma que sustentava as profissionais do sexo, inclusive no período do defeso. Mesmo que não pescasse, o macharal podia contar com a assistência financeira temporária do seguro desemprego para pescadores artesanais. Aquele dinheirinho que sobrava de inúmeras bolsas sociais também era investido em carnes glúteas fogosas e perfumados grandes lábios. Satisfeitas as esposas e as putas com a parte do soldo de seus homens que lhes cabia, evitava-se que o conflito tomasse danosas proporções.

 

            A guerra fria entre as casas de oração e perdição só se transformou em confronto declarado com a proximidade do Festival Internacional da Cachaça, evento ansiosamente esperado por todas as meninas do Delícias. Ter a cidade repleta de homens de todas as partes, embriagados e cheios de dinheiro para gastar, trouxe novo ânimo para o bordel da Fernanda, que viu na festa uma ocasião propícia para realizar a reforma que há tempos planejava. Sim, iria subir o puteiro. Aumentaria o bar e os banheiros, como também o espaço para as mesas e sinucas na parte de baixo da casa. Já no alto, construiria os quartos das suas protegidas, cada um decorado ao gosto de sua inquilina, o que estimularia as fantasias e apetites sexuais de sua clientela, permitindo a prática da usura na taxação dos preços do tira-gosto e da cerveja. Talvez comprasse um caça-níquel e enfeitasse a área social com um globo e jogo de luzes. Logo teria condições de aliciar garotas mais jovens e bonitas a fim de duplicar seus lucros antes que os evangélicos tivessem tempo de gritar “Aleluia”.

 

            A notícia da expansão do Delícias de Iracema espalhou-se desde Fortaleza a Praia do Barro Preto. Quanto mais se comentava sobre a reforma, mais andares ganhava o prédio e mais luxo se tornava seu interior, excitando o imaginário dos homens que passaram a tratar suas esposas com suspeita gentileza, acarinhando-as e presenteando-as com inusitada frequência. Assim, ganhariam o passe-livre para o festival e, consequentemente, se esbaldariam nos braços das loiras, ruivas, negras, brancas e morenas do cabaré da Maria Fernanda. Participariam do maior evento bocetesco desde os tempos de Calígula.

 

            Não tardou para que as carolas da Igreja Neopentecostal Renovação procurassem Pastor Mário Pureza a fim de que o mesmo tomasse uma atitude. Para elas, era inadmissível que um bordel se tornasse mais próximo do céu que sua própria igreja. Sugeriram que o pastor fizesse valer sua influência junto à prefeitura para que a obra fosse embargada. Motivos não faltariam para justificar a intervenção, afinal, burocracia e religião sempre encontraram maneiras pouco plausíveis – mas eficazes – para frear aquilo que lhes dá trabalho.

 

            Acuado pelas exigências das senhoras fiéis à fé que professava, o pastor pediu para ficar sozinho com Deus a fim de que o Criador lhe apontasse uma solução. Crédulas e confiantes, as boas mulheres abandonaram a igreja e retornaram aos lares onde seus maridos as receberam desconfiados, temiam que suas esposas houvessem encontrado uma maneira de comprometer a realização da obra de engenharia mais esperada desde a construção de Brasília.

 

            Sozinho em sua igreja, Pastor Mário Pureza viu-se preso em um dilema. Se conseguisse junto à prefeitura a proibição da continuidade dos serviços de ampliação do bordel, Maria Fernanda certamente revelaria o caso amoroso que mantinham secretamente há uns cinco anos. Se nada fizesse, provavelmente perderia seus fiéis para a igreja católica e teria que voltar a fazer pregações nos ônibus em troca de alguns trocados. O que fazer?O que fazer? Revolvia as ideias dentro de sua cabeça, combinava-as, organizava-as, mas nada lhe vinha à mente. Até que, prestes a desistir de tudo, uma solução brilhante iluminou seus pensamentos e o pastor suspirou aliviado, “Graças a Deus”.

 

            No dia seguinte, após as instruções de seu líder espiritual, os fiéis da Igreja Neopentecostal Renovação passaram a realizar uma campanha de orações de três turnos, todos os dias da semana, a fim de que Deus providenciasse uma solução divina para o problema do cabaré que, feito a Torre de Babel, desafiava os santos mandamentos e crescia na direção do céu. Os mais devotos e revoltados com a questão realizaram vigílias com orações e cânticos que duravam de meia-noite até as primeiras horas da manhã. Pastor Mário Pureza, assim, encontrou uma maneira de atender a demanda de seu rebanho sem trair a confiança de sua opiniosa concubina.

 

            Mas aí veio o raio e as luzes de sua ideia escureceram a sorte do libertino religioso. Tendo as novas instalações elétricas de sua casa destruídas pela força da natureza e a maior parte do telhado e quartos superiores consumidos pelas chamas do incêndio, Maria Fernanda decidiu que processaria a Igreja Pentecostal Renovação já que seus fiéis admitiam a responsabilidade pelo fim de seu negócio, supostamente arruinado pelo poder das orações.

 

            E assim aconteceu.

 

            Já na audiência de abertura do processo, tendo em vista a excentricidade da causa, o Dr. Arlindo Orlando – responsável pela 2ª Vara Cível de Aquiraz – comentou, após ler a reclamação da autora da ação judicial e a resposta dos austeros réus, que ainda não sabia como resolveria o caso, mas que não podia negar o que nos autos se revelava patente: De um lado do pleito, havia uma proprietária de bordel que declarava acreditar firmemente no poder das orações; e, do outro, fiéis de uma igreja inteira que desabonavam suas próprias preces, afirmando que as mesmas seriam incapazes de ter produzido o raio.

 

            Casado com um talentoso dentista, o advogado de Maria Fernanda desistiu da demanda antes mesmo da próxima audiência. Afinal, o único meio que sua cliente dispunha para pagar pelos serviços legais prestados não interessava a seu defensor.

 

            Na tarde em que Sabrina Bombom também partiu, Maria Fernanda sentou-se no bar e aproveitou a companhia de um maço cigarros e um litro de uísque barato. No dia seguinte seria realizado o bendito Festival Internacional da Cachaça e Fernanda se encontrava com sua casa vazia, cheia de dívidas com depósitos e madeireiras, traída e abandonada por seu amante, Pastor Mário Pureza. No auge da raiva, pensou em delatá-lo, mas foi demovida de seu intento por sua consciência, pois julgava tratar-se de um imperdoável crime prejudicar a quem se ama, ainda mais seu querubim.

 

            Bêbada, com a cabeça deitada sobre o balcão, Maria Fernanda acordou sobressaltada com o estrondo de um colossal trovão. Saiu na rua e, ainda atordoada pelo efeito do álcool, mijou-se de rir ao ver o teto da Igreja Neopentecostal Renovação em chamas, após a queda de outro raio.

 

            É, Joelma ... Deus é ruim de pontaria, mas não peca na justiça! – exclamou Maria Fernanda antes de receber em seus braços um combalido Pastor Mário Pureza, com a cabeça ferida por um caco de telha, a pedir-lhe perdão.  

 

16/07/2014, quarta-feira

 

 

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