PERVERSÃO

 

         Ontem sonhei que Jair me estuprava. Sim, em meu sonho, eu era merecedor de sua curra brutal.

 

         Os botões dourados de sua farda, as medalhas exibidas sobre o robusto peito esquerdo, os coturnos reluzentes. Jair todo esplêndido, todo fálico, ameaçava-me com sua vigorosa baioneta; enquanto eu gemia de tesão por sua macheza sólida, bélica.

 

         Antes de enfiar-me o membro, teso de ufanismo, Jair estrangulou meu pescoço e enfiou minha cabeça em uma tina de água fria. Xingou-me de veado, de bicha comunista; pressionou minhas costelas com seu joelho cristão e, com a outra mão, bateu com o quepe contra minhas nádegas vermelhas, socialistas. Em seguida, pendurou-me em um pau de arara e aplicou-me choques elétricos nos testículos, enquanto ouvia a Hora do Brasil.

 

         “Confessa, confessa”, gemia Jair. Sua boca salivosa e colada a meu ouvido quase mouco – aleijado por generosas mãozadas – roçava em minha orelha ferida. A proximidade da morte, o aflitivo fetiche, a humilhante condição de capacho na qual meu corpo se encontrava... Tudo era pólvora, tiro, petardos.

 

         Membro ereto, estandarte viril da moral e dos bons costumes, Jair avançou sobre minha incapacidade de resistir a seus encantos de sádico general romano, talhado na própria megalomania e medo da escuridão que abriga suas inconfessáveis taras de dedicado pai de família. Engoli o grito, o que catapultou sua selvageria.

 

 

         Uma, duas, três estocadas... Jair me penetrou com a caricata violência dos ditos abusadores sexuais. “Você merece, veadinho, você merece, mulherzinha”, gritava ele, marcial, encovado sobre o corpo que comia feroz (apesar de julgá-lo repulsivo). Precocemente, o sangue jorrou verde; o sêmen, amarelo. O gozo autoritário emergiu da dor subversiva. O hino nacional ecoou em meus tímpanos, enquanto uma bancada de conservadores urrava de satisfação: “Gol! Gol! Gol do Jair!”

 

         Sem olhar-me na cara, Jair empurrou meu corpo ferido e nu para dentro de uma vala comum. Lá, estreitei-me ao cadáver de Vladimir Herzog, enquanto meu abusador atirava pás de cal sobre nossas caras mortas.

 

 

         Arrancado de meu voluptuoso sonho pelo toque estridente do telefone, acordei sobressaltado, o lençol marcado por inevitável polução noturna.

 

 

         – Silas, acabei de ter um sonho maravilhoso contigo! – disse Jair, do outro lado da linha.

 

         – Duvido que tenha sido melhor que o meu – comemorei, com um sorriso evangélico – Em meu sonho, o Herzog estava realmente morto.

 

 

Emerson Braga

11/12/2014, quinta-feira

         

Comments: 4
  • #4

    Marco A (Thursday, 11 December 2014 18:18)

    Caralho! Como você consegue paralisar a respiração da gente assim? Genial!!!

  • #3

    Gina Girão (Thursday, 11 December 2014 12:14)

    Peste, você é excêntrico: uma peça cujo eixo de rotação não ocupa o centro e é destinada a transformar um movimento de rotação contínuo, em movimento de natureza diferente. Gosto da forma como sua continuidade age. ;)

  • #2

    CEU (Thursday, 11 December 2014 12:01)

    Nenhum objeto artístico poderia traduzir tão perfeitamente nosso sentimento de perplexidade, revolta e asco diante das mentalidades e atitudes que insistem em voltar do passado e assombrar nossa condição de ser humano.

  • #1

    baltazar (Thursday, 11 December 2014 10:27)

    Chocante homenagem aos resistentes da ditadura militar, em especial ao reportes Herzog