O SALTO

 

Minha tia morreu.

Eu não gostaria de ter começado este texto assim, talvez um eufemismo, uma metáfora mais suave, não sei. Eu não gostaria de ter começado este texto assim, mas não há outra maneira de iniciá-lo. Preciso ter coragem para enfrentar tua morte, tia Xixica, assim como tiveste coragem de enfrentar a vida, com tanta dignidade e bravura. Assim como um dia eu saltei do trampolim para a piscina... Mas, como são rasas estas águas amargas de agora.

Quanto a ti, Morte, não irei chamar-te partida, viagem, descanso, último suspiro ou por qualquer uma destas expressões que tentam descaracterizar-te de teu sentido primordial, de tua essência, de tua razão de ser. Irei chamar-te apenas Morte porque morte é aquilo que tu és desde que vim ao mundo, desde que percebi, ainda criança, que tiveste o privilégio de levar para junto de ti aqueles que amei em minha vida. Tens em tua companhia meus avós, alguns tios e tias, amigos, pessoas que amei, que ainda amo, joias raras, de corações agigantados.

Na madrugada de hoje, invejosa do amor que nós todos sentíamos por ela, levaste embora minha tia Xixica. Mas sei por que fizeste isso. Não foi a fim de ferir aqueles que a amavam, mas para trazer um pouco de luz e graça para esta tua vida, Morte, sempre tão cercada de lágrimas e despedidas dolorosas. Levaste pelas mãos uma mulher que deu vida, que alegrou a vida, que se agarrou à vida, apesar da dor, até que a vida tivesse piedade e a entregasse aos teus certeiros cuidados.

Minha tia morreu.

Mas sua morte será uma maneira de nos mantermos vivos, por meio de seus causos, suas cantigas, seu riso, sua força.

Deveria ser mais fácil. Dizem que eu tive tempo de me preparar, que a morte seria inevitável. Mas não, não, não! Inevitável é esta sensação dolorosa de que ainda é cedo, que ainda tínhamos mais a dizer, que poderíamos ter comido aquela peixada de camurupim que te prometi quando tu recebesses alta, tia Xixica. Mas, logo, logo, o comeremos, todos em família, reunidos em tua homenagem, em celebração a herança que nos deixaste: Coragem e vontade de viver.

Obrigado por cada gesto de afeição e por ter participado de meus dias até a madrugada de hoje. Sim, estou chorando, eu sei. Mas não te preocupes, ficarei bem, isso passa. Mas não hoje, talvez amanhã, quem sabe. Não te preocupes.

Não acredito em enterros. Não acredito em crematórios. Tu não serás jamais guardada em um abraço eterno pela terra e muito menos ter tua memória transformada em cinzas. Na verdade, te transformaste na determinação que nos impulsionará a seguir com nossas vidas, orgulhosos de termos aproveitado por tanto e por tão pouco tempo a tua luminosa companhia. E aqui, dentro de nossos corações, tua lembrança permanecerá, como uma voz que diz:

Não pare, não tenha medo. Salte!

 

Emerson Braga

Comments: 1
  • #1

    Baltazar (Monday, 28 March 2016 16:42)

    Em algumas horas é mais difícil encontrar "a palavra certa" no adeus particularmente. "São rasas estas águas amargas de agora /não tenha medo. Salte!" Pedir coragem é pedir muito mas também é tudo o que podemos frente ao que é definitivo. Sinta-se confortado sempre, amigo. Seu texto é uma belíssima homenagem, honra a vida de sua tia Xixica. Grande abraço!