O CU

 

O cu está no centro das questões que não podem ser ditas: de tudo aquilo que é proibido, mundano, profano, sujo, repulsivo e vergonhoso.

 

Bode expiatório de uma sociedade cujo ânus é imperfurado, o cu é sugerido como coisa não existente naqueles que são brancos, “bem nascidos” e abastados. A maior virtude dos tidos como belos e pertencentes às mais elevadas esferas é a fantasia popular de que eles não cagam e nem peidam. Sempre limpos. Sempre discretos.

 

Propriedade apenas das classes menos afortunadas, nem mesmo dentre os pobres e miseráveis ― que dele falam com mais frequência e sem maiores constrangimentos ― o cu encontra um meio onde possa florescer como uma ideia, um movimento, uma semente revolucionária.

 

Enquanto cuidarmos apenas de nosso próprio cu, nada faremos de positivo e engrandecedor pelas futuras gerações. Precisamos cuidar uns dos cus dos outros. E quando falo em cuidar de um cu que não seja o seu, refiro-me a zelar pelo direito de expressão do outro, garantir-lhe o privilégio de fazer o que quiser de seu próprio cu.

 

Cuidar do cu do outro não é delegar funções ou limitações ao cu alheio, é assegurar-lhe liberdades.

 

De todas as negações impostas ao cu, considero aquela que proíbe o acesso ao prazer a mais violenta e cruel. Chamam-no de esgoto, enquanto órgão excretor. Como se a vagina e o pênis também não fossem canais por onde nosso líquido excrementício segregado nos rins é expelido. Como se, por vezes, nossa própria boca não se fizesse de tubo excretor daquilo que ingerimos e que nos faz mal. É uma injustiça direcionar ao cu toda a sujeira que apenas existe nas mentes e nas línguas de homens que, a qualquer custo, impõem a fraudulenta santidade de seus inconfessáveis infernos a toda uma sociedade.

 

Relegado à simples condição de parte integrante de nossa anatomia, o cu torna-se impotente diante das questões sociais que apenas poderiam ser apreciadas caso ele transcendesse a própria fisiologia e fosse integrado aos nossos códigos morais não como objeto de repúdio, mas na condição de célula revolucionária.

 

         As questões de gênero que nos são impostas dividem homens e mulheres (sejamos nós cisgêneros, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, agêneros...) em categorias que nos encerram como meras criaturas mecânicas, portadoras de acessórios eróticos diversos. Convencem-nos de que nossas diferenças anatômicas tornam-nos incompatíveis. Apartados e envergonhados de nossos genitais, não nos sentimos preparados para o amor. E não há revolução sem amor.

 

         Algumas pessoas possuem pênis. Outras, vagina. Umas muito poucas têm os dois órgãos. Mas apenas o cu é parte integrante do corpo de todas as criaturas humanas. O cu nos une. O cu nos torna um só, tão coesos quanto uma palavra monossilábica.

 

Liberte seu cu e lute pela liberdade do cu de todos! Submetê-lo ao silêncio e tratá-lo como abstração é uma maneira de anular-se como pessoa diante da realidade das coisas. É preciso ter cu para não ter medo. É preciso ter cu para seguir em frente.

 

         Não podemos trilhar com leveza nossos caminhos enquanto nos dobrarmos sob a chibata de uma polícia anal que nos persegue sempre que cagamos, peidamos ou transamos. Somos prisioneiros de um meio social cujos valores estão voltados não para a satisfação de todos os indivíduos, mas para o gozo exclusivo daqueles que entopem nossos retos de acanhamento sexual e culpa cristã. 

 

         Enquanto continuarmos fingindo que não temos cu, seremos manipulados pelos mesmos cuzões que fazem merda e nos acusam de toda a sujeira.

 

         Não permita mais que seus opressores digam-lhe o que fazer de seu próprio cu, como se você estivesse bêbado e ele não lhe pertencesse. Cu de bêbado tem dono, sim! E o de quem está sóbrio, também!

 

A partir do momento em que aceitamos que alguém imponha controle de qualquer ordem ao nosso cu, nos sentimos inclinados a agir da mesma forma em relação ao cu dos outros. O que nos contamina de autoritarismo e hipocrisia, essas falhas de caráter embutidas em nossas mentes com o vil propósito de transformar iguais em inimigos.

 

O cu não pode mais ser tabu e nem assunto proibido. Não pode mais ser negligenciado, torturado por força celibato, censurado moralmente ou sexualmente agredido. O cu não pode pagar por ser o que é, pois ele é aquilo que é. E, neste aspecto, tem dado o melhor de si. 

 

          Os que têm cu, que me sigam!

 

          Já os que fingem não tê-lo ou dizem não sabê-lo:

 

          Vão tomar no cu!

 

Emerson Braga

23/10/2014 

 

 

Comments: 0