MATERNA

 

Minha mãe é uma jovem senhora excêntrica, uma Sahrazad alencarina, com sete véus nordestinos de chita a ornamentar-lhe o ano inteiro o rosto iluminado pelo sol ― este pobre coitado certa vez por ela vaiado por ter demorado a nascer. Enganaria ela até o mais perspicaz dos sultões com seus mil causos de corta-bundas, pernas-cabeludas e loiras-do-banheiro.

 

Minha mãe não tem muitas posses, mas teima em banhar suas costas com águas de esmeralda, mesmo quando faminta, mesmo quando abandonada. É uma mulher de coração agigantado que acolhe boêmios, loucos e poetas. Diverte-se com eles quando, ébrios, repetem seu doce nome em poesias, declarações de amor e cantigas. Minha mãe não tem pudores afetivos e entrega-se embevecida ao amor de tantos homens e mulheres, delicada amante de todos. Com os mesmos peca e junto a eles reza. Santa ou meretriz? Não sei. Sei apenas o quanto ela é materna.

 

            Peço desculpas pelas incontáveis vezes que cheguei a odiá-la por não compreendê-la em suas contradições, por não perdoá-la quando nela identifico certa preguiça ou quando me encontro perdido dentre seus excessos. Acontece que me preocupo com ela. Sempre tão linda e festiva, acaba por esquecer-se de si mesma e, distraída, me deixa a cultura, a panela e a esperança em uma profunda miséria avessa a seus naturais encantos. Minha mãe não sabe o quanto eu sofro por ela, o quanto quero seu bem e que me permito amá-la todas as horas de meu dia porque a amo no embalo da rede, sem pressa.

 

            Minha mãe amanhece acordada, não dorme nunca, pernoita a vigiar seus filhos. Muitas vezes chora às escondidas, por perdê-los para os vícios do mundo, que corrompem seus caçulas atirados nas calçadas como coisas meramente usadas. Tenho uma bela mãe que está envelhecendo precocemente, não pelo efeito do tempo, mas por ser mãe solteira. E os homens e mulheres que por sua vida passam com promessas vazias de ajudá-la a gerir seu futuro, apenas exploram-na, prostituem-na, sem tratá-la com o devido respeito, sem presenteá-la com livros e mesas fartas. Estojos de maquilagem ela não quer mais.

 

Reflito constantemente acerca desta colossal mulher, sobre sua capacidade de continuar a sorrir, apesar de todas as adversidades que insistem em vilipendiá-la. Logo minha mãe, que apenas faz por onde ser tratada com esmero e zelo, esta mulher que recebe em sua própria casa com redobrados cuidados os filhos de suas comadres, muitas delas umas velhas mexeriqueiras que injustamente a xingam de atrasada, matuta e desleixada.

 

            Sou filho de uma mãe tão bonita quanto Iracema. Sou herdeiro de uma mulher-macho com olhos voltados para o mar. Minha mãe é jangadeira, catadora, repentista e rendeira. Uma mulher frágil, mas resistente às agruras da vida, pois, de tanto amor por seus filhos, transcendeu ela a própria figura materna: Tornou-se Fortaleza.

 

Emerson Braga

13/04/2015, segunda-feira

   

Comments: 3
  • #3

    Gina Girão (Wednesday, 20 May 2015 07:57)

    Pô, Emerson! Nasci dessa mãe por força do medo dos meus pais: marido queria que mulher, grávida aos 16, tivesse melhor acompanhamento que o disponível no interior, então rumamos feito quase família (primeiro filho sofre!), quase num burrico, e em glória dessacralizada. Que texto imenso, de doer e de moer afetos, transformando-os em fatos. E 'estojo de maquilagem' foi a gota no copo já cheio de estesia.

  • #2

    edson morais (Monday, 13 April 2015 15:28)

    Texto sensacional... parabéns meu irmão!

  • #1

    Marco A (Monday, 13 April 2015 13:23)

    Que coisa linda!