LÁ DO ALTO DEVE SER BONITO

 

Um menino pra ser feliz tem que ser o diabo, pés no chão.

 

Naquele sábado, a criançada corria descalça no meio da rua enquanto o menino tomava às pressas um substancioso copo de abacatada. Tinha certeza de que apenas sairia para brincar caso não restasse sobre sua boca suja de palavrões e risadas cavilosas sequer o bigodinho esverdeado.

 

 

– Pronto, mãe, terminei – disse. Os olhos pidões e de um luminoso castanho, apressados, pareciam já ter alcançado a rua, enquanto o restante do corpo aguardava obediente pelo consentimento materno.

 

 

– Volta antes do almoço se quiser ganhar uma cocada – advertiu a mãe sem muita firmeza ou convicção naquilo que dizia, daria o doce de um jeito ou de outro, pois jamais fora boa em castigos. Quanto aos bolos, não sabia aplicá-los, mas fazê-los. Era uma dessas mulheres que qualquer criança sonha ter como mãe, toda cheirosa a sabão e açúcar.

 

 

Ele era o mais baixinho de sua turma. De pernas ágeis e joelhos perebentos, não se deixava intimidar pela estatura tão mais avantajada de seus colegas de traquinagem e pirraça. Saber alguns palavrões cabeludos havia lhe conferido certo respeito no meio da molecada e, mesmo assim, alguns arengueiros ainda se metiam com ele. Não que o detestassem; na verdade, era querido. Mas, quem nesta vida é menor que os outros, desde pequeno experimenta muitas e constantes injustiças.

 

Sentado entre Zonzo e Piroca, contemplou o céu e observou o lancear das arraias de julho. Uma delas era um belo paquetão rubro-negro, robusto e de rabo feito de tiras de pano amarelas. Serpenteava como imponente apêndice de magnífico ser voador tingindo de sangue, luto e ouro o imaculado azul do céu. A outra pipa não era tão grande, mas rivalizava com sua oponente pela multicolorida beleza dos papéis de seda que lhe conferiam um aspecto maravilhoso de pássaro mitológico, sua cauda majestosa chicoteava no ar lindamente, rabiscando cor e movimento no invisível.

 

 

Zonzo apostou em uma das arraias e Piroca parecia não ter dúvidas de que a outra, bem maior, ganharia aquele duelo. As linhas que empinavam as pipas estavam devidamente besuntadas de cerol. Disputavam o firmamento dois capoeiras planadores, ameaçando-se mutuamente com seus afiados instrumentos de ataque.

 

Enquanto os amigos contavam improváveis histórias de motoqueiros decapitados pela mortal linha coberta de massa vítrea, o menino mantinha os olhos atentos nas encantadoras adversárias celestes e sonhava que, antes do almoço, retornaria para casa com uma daquelas criaturas aladas. Se conseguisse pegar a arraia derrotada quando ela bolasse – após ter sua linha partida pelo barbante inimigo –, ganharia o respeito de toda a pivetada da rua. Também teria um brinquedo para chamar de “meu”, um que não tivesse que dividir com o irmão caçula por ter sido comprado por sua mãe, que tudo compartilhava.

 

 

– Macho, deve ser massa demais voar – suspirou ele muito sinceramente, arrancando risadas dos amigos que o tinham na condição de mascote. Não deu cabimento à troça gaiteira e manteve-se vigilante, atento. Em poucos minutos, seria eleito o maioral, o danadão. “Depois de hoje, não fico mais de time de fora quando a gente for brincar de travinha”, calculou muito cheio de si.

 

 

A linha da pipa arco-íris não suportou o afiado roça-roça e a arraia desfaleceu com a deselegância de uma sereia bêbada que mergulha em busca do profundo azul do mar. Carregada pelo vento, debandou para os lados do chafariz, sendo prontamente seguida pela meninada endiabrada. Todos de olhos fixos no céu, muitos foram os tropeços, topadas e esbarrões, o que diminuiu sensivelmente a quantidade de candidatos a novo proprietário da bela pipa. “É minha, é minha”, berravam os que ainda corriam, ansiosos de que o prêmio não ficasse preso em um poste ou árvore, possibilitando o resgate somente aos meninos mais velhos, arteiros e habilidosos.

 

A freada brusca resultou em uma cantada de pneus seguida de uma nuvem fedida de fumaça. Porém, a destreza do motorista não fora suficiente para evitar o doloroso impacto. Arremessado a uma altura de sete, oito metros, o pequeno lanceou no ar como um Ícaro de papel de seda e caiu junto ao meio fio, sob o olhar incrédulo de seus amigos, os melhores em pegar bigu na traseira dos ônibus, seus dois heróis.

 

 

Piroca, quase sem fôlego, depositou a pipa sobre o peito inerte do coleguinha. Sabia que, como o Naldo Traficante e a Zilma Mongoloide, seu amigo estava morto. Morrera por aquela pipa, era justo que ficasse com ela. Carinhosamente, limpou das narinas da impúbere vítima o catarro misturado a sangue e, com a outra mão, ajeitou os cabelos desgrenhados e sebosos.

 

– Cadê meu filho? Cadê meu menino? – gritou uma senhora que tentava vencer a multidão. “Mãe sempre sabe”, é o que dizem, não é?

 

Antes que a mulher tivesse a infelicidade de ter em seus braços o corpo sem vida de seu único filho, Zonzo abraçou-se àquela despedaçada mãe e falou, enquanto chorava e ria:

 

– Tia, o Boqueira voou! Não chore, não chore... A senhora perdeu. Aquilo foi lindo.

 

Emerson Braga

11/12/2014, quinta-feira

Comments: 3
  • #3

    Marcelo Martins (Thursday, 11 December 2014 12:23)

    Todo texto em que há personagens cearenses na pura essência é maravilhoso!! (Macho, deve ser massa demais voar) Adorei o texto!!!

  • #2

    Ceu (Thursday, 11 December 2014 05:17)

    Respiro pra me recuperar. Você é um desenhista, um construtor de imagens. Fortes, vivas, coloridas e penetrantes imagens formam esse conto lindo e dolorido de tão real e mágico ao mesmo tempo. Metáforas sensacionais como "e a arraia desfaleceu com a deselegância de uma sereia bêbada que mergulha em busca do profundo azul do mar" enchem de beleza e encanto um universo, que poderia ser áspero e cru não fosse a sensibilidade e a perspicácia do contista.

  • #1

    Marco A (Thursday, 11 December 2014 05:14)

    Que linda narrativa! Arte criada por quem tem talento de verdade é assim mesmo, consegue extrair beleza do que é triste. Emoção de dar nó na garganta.