José é o típico homem de bem. De origem humilde, é um cidadão pacato, gentil, que paga suas contas em dia, vai à igreja e sempre organiza churrascos para toda a vizinhança em época de Copa do Mundo.

 

Morador do Vale dos Sonhos, em Goiânia, José mudou-se para Brasília ainda criança de braço. Lembra com orgulho da imagem idealizada que construiu para o próprio pai, sertanejo forte e trabalhador que havia ajudado na edificação da capital do país. As mãos paternas estão por toda a parte: No Palácio do Governo e na Catedral, nos edifícios dos Ministérios e no Parlamento. Vitimado pelas complicações de saúde acarretadas por um grave acidente de trabalho, o velho não vivera para ver acabada a obra que consumira sua vida.

 

Viúva, sem lugar parar morar e com três filhos pequenos, a mãe de José mudou-se para Goiânia e lá trabalhou na indústria têxtil até morrer, dois meses depois de se aposentar. Não resistira ao agravamento de uma doença respiratória decorrente da exposição prolongada à poeira, metais e fumaça que seu trabalho a submetera por tantos anos. A empresa mandou uma coroa de flores. Que honra. Seus patrões eram bons cristãos, tementes a Deus.

 

Segurança do condomínio de luxo Aldeia do Vale, José considera-se um privilegiado por trabalhar tão perto de casa e por ajudar na manutenção da ordem e da lei. Denunciar os filhos de seus vizinhos ― que invadem as mansões a fim de furtar objetos de valor ― não lhe causa constrangimento algum. Pelo contrário, sente-se importante quando os policiais permitem que ele também aplique justos corretivos nos menores delinquentes. “Uma boa pisa bota qualquer um nos eixos. O que não se aprende com a bíblia, o cassetete ensina”, dizia José ao ver algemados os meninos que vira crescer junto dos seus. Por isso, seus famosos churrascos eram tão importantes, para que não perdesse a simpatia da gente decente e de bem que vivia em seu bairro. José queria mais era que os bandidinhos se ferrassem. Contanto que seus filhos (os legítimos e os que tivera com sua cunhada) crescessem obedientes e íntegros, tudo permaneceria bem.

 

Ontem, um cirurgião plástico que reside no Aldeia do Vale, convidou José a fim de que juntos seguissem para uma manifestação popular contra a corrupção e a favor do impeachment da senhora presidenta do Brasil. Embevecido com o ilustre convite, José correu para casa e, seguindo as orientações de seu abastado amigo, vestiu uma camisa da seleção canarinho e se armou com duas frigideiras. Determinado, ajudaria Dr. Antero Patriota a colocar o Brasil nos eixos.

 

― Já dirigiu um carro desses, Zé? ― perguntou muito bem humorado o cirurgião sentado à direção de seu Audi Q7 ― Tem nem perigo, hein? No Ceará o possante é um jegue bem nutrido, não é não?

 

Apesar de não possuir sotaque, não se identificar com o povo cearense e jamais ter retornado ao estado natal desde que se mudara para Goiás, José gargalhou gostosamente da pilhéria e, espirituoso que é, simulou com perfeição um som equídeo e apenas cessou o artificial relincho quando foi dada ignição no veículo. Que máquina! Trabalharia bastante e sem reclamar para um dia comprar um carro ao menos parecido com aquele. Se continuasse agradando as pessoas certas, talvez pudesse se mudar para um bairro melhor. Queria mais da vida que morrer no Vale dos Sonhos. Quem sabe aprendesse, inclusive, a pronunciar a palavra “impeachment” sem levar as pessoas ao riso.

 

Que cena bonita! Duas realidades distintas que dividem o mesmo sonho rumaram em direção à Brasília a fim de fazer história. O ricaço da Aldeia do Vale e o pobretão do Vale dos Sonhos. Antero e José derrubando todas barreiras sociais, ambos vestidos com blusas da seleção brasileira. Uma utopia possível, em um mundo que construiriam juntos.

 

― Ué? Tua blusa tem seis estrelas, homem de Deus! ― observou o cirurgião.

 

― Comprei de um camelô ― confessou José, constrangido diante da imponente camiseta oficial vestida por Dr. Antero ― Acho que ele acreditava que seríamos hexa...

 

Nova gargalhada. Novo relincho.

 

Durante o trajeto, muito apaixonadamente, o cirurgião explicou ao segurança a situação atual do país. Criticou beijos lésbicos em novelas, as depravadas Marchas das Vadias, a lei do feminicídio e a adoção de crianças por casais gays. Defendeu a diminuição da maioridade penal, a intervenção militar, a institucionalização da pena da morte, a privatização de grandes estatais e a aprovação da lei de terceirização. Doutor Antero falou de tudo um pouco, enquanto esmurrava o volante e salivava eufórico. José bebeu aquelas palavras como se estivesse diante de um oráculo. Imediatamente, identificou-se com as atraentes ideias e tomou-as para si como se fossem suas. “Somos iguais”, pensou José enquanto acariciava com o olhar a bandeira nacional posta sobre o colo daquele cidadão exemplar, daquele modelo de homem. Como ele, um verdadeiro indignado.

 

― O senhor é patriota até no nome, não é, doutor Antero? ― brincou José, arrancando daqueles dentes de rara brancura uma saborosa risada.

 

De volta à cidade que seu pai havia ajudado a erguer, José empenhou-se em fazer pequenos serviços para os amigos de doutor Antero ― militantes do Movimento Brasil Livre ―, como comprar água e lanche. Corria de um lado para o outro, solícito, devidamente adestrado por seu companheiro de caça aos corruptos dos quais sequer sabia o nome ou que funções desempenhavam.

 

― Vai, José! Bate essas panelas! ― dizia esfuziante o engajado cirurgião, enquanto conversava por celular com o filho que mora na Europa e que também participava do protesto através do Skype.

 

Empolgado, José martelava as frigideiras enquanto cantava do hino nacional os trechos que conhecia. Com lágrimas nos olhos, acompanhados de dois policiais militares, posou com doutor Antero para uma fotografia. Pela primeira vez, sentia que fazia parte de algo importante, que poderia ajudar a mudar as coisas, que não havia divisão entre pobres e ricos. “Somos todos um só! Nosso partido é o Brasil”, gritavam, lado a lado, feito correligionários, como dois irmãos.

 

De repente, a manifestação deparou-se com um jovem vestido de camiseta vermelha e passaram a gritar-lhe insultos. Mandaram-no partir para Cuba, xingaram-no de traidor e comunista. Sorridente, o provocador deu de ombros, como se as ofensas não lhe dissessem respeito, o que inflamou ainda mais os humores de toda a gente.

 

Extasiado, transformado em viril defensor da família brasileira, José avançou sobre o rapaz e feriu-lhe o alto da cabeça com um violento golpe de frigideira. Houve tumulto. Uns aplaudiram, outros reprovaram. O moço, com o sangue a escorrer pela face transtornada, encarava um José satisfeito do próprio ato, pronto para agredi-lo ainda mais. “Tudo! Qualquer coisa por meu país!”, pensava o mais novo ativista da moral, da decência e dos bons costumes: O incorruptível José Ferreira da Silva, um brasileiro.

 

Antes que a polícia o levasse embora, José ainda procurou por doutor Antero, mas não conseguiu distinguir a face amiga dentre tantos rostos que pela primeira vez o notavam. Câmeras filmadoras e fotográficas o perseguiram em frenesi, até ele finalmente ser escoltado para dentro da viatura.

 

Hoje, pela manhã, José foi demitido. Doutor Antero e os outros condôminos não podem confiar a segurança do Aldeia do Vale a um homem violento como ele. Era o certo. Afinal, ali só mora gente de paz.

 

Emerson Braga

 

13/04/2015, segunda-feira

Comments: 3
  • #3

    Arão Filho (Monday, 13 April 2015 13:14)

    Sempre shows teus textos, Emerson! Existem muitos José por aí com essa personalidade facilmente moldável pelos outros... Parabéns!

  • #2

    Henrique Campanilli (Monday, 13 April 2015 12:56)

    Esta ironia triste e derradeira que culmina a tantos e tantos neste país é um fato lastimável. Seu texto é maravilhoso, Emerson. Parabéns!

  • #1

    Marco A (Monday, 13 April 2015 09:17)

    A realidade exibida a pinceladas bem fortes, como deve ser, como é. Chega-se a um ponto em que unicamente a ignorância não é suficiente para explicar tamanha anulação da própria existência; há muita insensibilidade também. A insensibilidade de crosta grossa que a pobreza crava em um homem. Excelente, Emerson! Excelente!