INSURREIÇÃO E PESTICIDA

 

Escalou a parede com habilidade inerente a criaturas subversivas. Determinada e destra, passeou por entre os quadros de José Sarney e João Paulo II sem demonstrar nem o mais tênue sinal de respeito a ambos. Parecia apressada, talvez ansiasse por em prática seu heroico projeto antes que algum membro da família abandonasse a sala de estar. Aproveitou-se da distração de todos, sabia que Ary Fontoura em cena jamais permitiria que alguém ousasse levantar para vasculhar a farta geladeira.

 

 

Estava sozinha. Apenas contava com a amizade de suas companheiras quando rastejava pela sarjeta, em lugares apertados e úmidos, onde geralmente dormia, a fim de não ser descoberta e aniquilada. O fato de não estar em bando não diminuía sua audácia e valentia, bastava-se. Para desestabilizar a sensação de paz da qual gozavam seus opressores, não carecia de um grupo organizado.

 

         Posta em estado de alerta sobre o relógio de parede, esticou-se toda a fim de que suas extremidades não falhassem durante o corajoso voo, não temia os pés calçados em chinelos, toda kamikaze. As asas eriçaram como se testassem a direção do vento, adivinharam as possíveis rotas, então, aventurou-se pelo percurso que, instintivamente, pareceu-lhe o mais seguro. Decidida, repleta de uma liberdade que não cabe por detrás de paredes, mergulhou na imensidão da sala antes que Regina Duarte beijasse os lábios de José Wilker. Inúmeros pares de olhos acompanharam sua intrépida investida, mudos por um ou dois segundos, antes do corre-corre e gritaria inevitáveis. Com destreza e perícia, deu voos rasantes sobre rostos e cabelos, ameaçou posar em ombros e adentrar decotes, fez movimentos circulares sobre as cabeças febris. Instalado o caos de bibelôs quebrados e inimigos desorientados, descansou sobre a porta da sala, satisfeita.

 

         O golpe certeiro do pai – tirado de seu sossego pela baderna que constrangia a ordem imposta por sua autoridade – achatou-lhe por completo o pequeno corpo, antes que ela pudesse concluir seu intento em vingar a morte de duas amigas, assassinadas ainda naquela mesma semana. Uma fora esmagada no banheiro. A outra acabara presa em uma fatal armadilha, posta sob a pia da cozinha.

 

         – As coisas não podem permanecer como estão! – protestou uma das baratas após as homenagens póstumas prestadas sob o assoalho à amiga recentemente falecida. Seu clamor inflamou as demais que, do alto dos canos de esgoto, proclamaram a necessária revolução.

 

         Não tiveram nem sequer a oportunidade de abandonar com segurança seus esconderijos. Foram fulminadas. Inocentes (como toda criatura romântica), acreditavam que a luta seria contra chinelos e vassouras.  Acabaram exterminadas pela solução final: Baygon.

 

Emerson Braga

 

15/01/2015, quinta-feira

 

 

 

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