CARTA A JORGE LUÍS BORGES (Publicada pela Revista Plural - maio - Escrita contemporânea)

 

24 de Agosto de 2004

Instituto Oftalmológico Saphir Augen

São Paulo – SP, Brasil

 

Inumado Guardião de Histórias;

Antes de esclarecer o que pretendo com esta excêntrica correspondência, gostaria de apresentar-me, a fim de que não se torne a leitura de minha carta um completo exercício de estranheza. 

Graduei-me em Medicina pela Universidade Federal do Paraná, em 1982, e fiz três anos de Residência Médica em Oftalmologia na Faculdade de Medicina da USP, onde também me especializei na área de Cirurgia Refrativa. Depois disso, realizei treinamento em Cirurgia Plástica Ocular na Espanha e Estados Unidos. Tenho Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e fui examinador de onze teses de mestrado e doutorado, além de possuir dezessete artigos completos publicados no Brasil e exterior. Em 2002, assumi o cargo de Diretor no Instituto Oftalmológico Saphir Augen, função que desempenho ainda hoje.

À frente do instituto, procuro obter o máximo de lucro financeiro, pois são muitos e dispendiosos meus vícios e frivolidades. Prestamos um serviço de oftalmologia avançado e eficiente, capaz de retardar o progresso de doenças oftalmológicas em nossos mais abastados pacientes que, por medo da cegueira, financiam nossos caros estudos. Costumamos dizer por aqui que trabalhamos com o nobre propósito de que se mantenham abertas as janelas da alma. Sim, eu sei como ganhar dinheiro. 

Por favor, não te enerves. Apesar de minhas credenciais e títulos, não estou interessado em tratar-te, Borges. Afinal, há pouco a se fazer pelos olhos dos cegos. O que poderia fazer eu, então, pelos olhos de um homem há dezoito anos falecido? Posso chamar-te simplesmente assim, Borges, como te citam até mesmo os teus mais vulgares leitores? Pronto. Dirigir-me-ei a ti sem maiores formalidades. 

Pergunto-me, enquanto redijo estas linhas, se algum carteiro de Genebra – talvez simpático à extravagância de um destinatário que reside no Cemitério de Plainpalais – deitará o envelope sépia aos pés da lápide que guarda tua sepultura. Poderiam os mortos ler, mesmo aqueles que morreram cegos? Deveria eu ter escrito a carta em braile? Tinhas intimidade com anagliptografia? Ou preferirias que, deitada sobre tua derradeira morada, Maria Kodama, tua arrogante viúva, lesse em voz alta o conteúdo das palavras que agora escrevo, mesmo que o verbo, há tempos, tenha abandonado teu corpo? Dizias tu que, caso um dia recuperasses a visão, não sairias de casa e permanecerias na companhia de teus livros. Tens agora a companhia de mortos dos quais tu não sabes sequer o primeiro nome. Deveriam ter depositado teu esquife em uma biblioteca, não em uma cova mortuária. Na morte, Borges, talvez os livros te pareçam mais vivos e vívidos que estes homens anônimos, sepultados. 

Que mal consumiu tuas vistas? Glaucoma? Retinose pigmentar? Por que teus olhos decidiram, desde o dia de teu nascimento que, paulatinamente, fechar-se-iam para as coisas deste mundo? Certo de que um dia ficarias cego, passaste a dar às palavras um significado transcendental, como se estas fossem símbolos mágicos, notas musicais de uma canção que toca a eternidade das coisas possíveis e inimagináveis. Incapaz de ver, seguiste adiante e desenhaste o universo a teu modo, com tintas ora escuras, ora claras. Algumas paisagens, memórias; outras, imaginação. Haverá algo de divino naqueles cujas chamas do tenebrário, lentamente, se extinguiram? Como o cego pode enxergar formosura em um mundo sombrio, do qual meus sadios olhos capturam apenas frialdade? 

Borges, o olho humano é uma máquina óptica perfeita, alojada no interior de uma cavidade óssea, protegido desta vida medonha por sensíveis e débeis pálpebras. Quando os olhos focam um objeto, a imagem chega primeiro à córnea, para logo em seguida atingir a íris. Daí, a íris redireciona a luz recebida através da pupila e, depois disso, a imagem chega ao cristalino e é focada sobre a retina. É de responsabilidade da retina transformar essas ondas luminosas em impulsos eletroquímicos que, ao final do processo, são decodificados pelo cérebro e transformados em horror.

Estranho, é nosso aniversário, o teu e o meu. Hoje, completo 55 anos, idade com a qual ficaste completamente cego. Coincidência? Talvez sim. Mas, ora, e o que não é fruto de uma? Meus olhos estão quebrados, Borges, e preciso que os conserte. Tudo vejo, mas nada enxergo, pois emoção nenhuma é captada por minha visão. Não percebo as coisas a meu redor, as pessoas me enfadam, as paisagens me aborrecem, nada que vejo me proporciona nem mesmo a mais tênue lufada de prazer. Estou cego. Sinto que já vim ao mundo assim, incapaz de sentir. Tenho os olhos desde minha infância vendados por magnífico desamor. Ensina-me a viver, gentil morto. Há algo de abominável em minha natureza, minha tétrade sombria, em que sadismo e narcisismo se misturam à psicose reinante em meu coração maquiavélico. Sou um homem mau, que apenas avia receitas e colírios, incapaz de escrever um poema, nem mesmo o mais invisível e insignificante versinho. 

Se eu soubesse o que me acometeria, jamais teria aceitado o convite de um colega e participado da palestra que ministraste no Curso de Madureza Santa Inês, em agosto de 1970. Eu contava 21 anos e já havia me estabelecido em São Paulo. Ambicioso e indiferente às urgências da alma, de repente, peguei-me assombrado por tua eloquência, ao citar Kipling. Ninguém fracassa tanto como imagina. Ninguém tem tanto sucesso como imagina. Além disso, o que importa o sucesso e o fracasso? No fim das contas, todos seremos esquecidos, o que, aliás, é melhor. Aquela declaração fez com que eu te odiasse enormemente. Senti vontade de fulminar-te. E, realmente, cheguei a fantasiar com teu assassínio. Quando retornaste à Argentina, ameacei-te de morte com um estúpido telefonema anônimo. Alguns anos depois, debochaste de minha investida ao conceder entrevista a um jornalista brasileiro. Não me envergonhei quando disseste que os assassinos são imbecis, pois, apesar de todas as minhas deficiências morais, limitações de caráter e ausência de afeição, acredito que a capacidade de matar alguém não figure em meu íntimo, ao menos não de modo literal. Eu pensava em subtrair-te a vida por crer que, morto o homem, também morreria o germe que plantaste em minha consciência naquele maldito dia e, assim, poderia eu retornar a meu estado inicial, em que eu não me importava. 

Há alguns meses, ceguei uma mulher, caríssimo Borges. Não, por favor! Não me tome por torpe carniceiro, leviano com as obrigações e cuidados exigidos por meu delicado ofício. Falo de outra cegueira, aquela contraída após vil traição, a que adoece salubres almas e as transforma em fantasmas queixosos, que se arrastam entre a esperança vilipendiada e a perda crônica das ilusões. Aquela mulher entregou-me seus olhos e eu os escondi em um lugar onde ela jamais os encontrará, enterrei-os no fundo de minha incapacidade de sentir. Hoje cedo, ela veio a meu consultório. Tateando às cegas, buscou meu rosto e meus lábios, declinei de suas desesperadas e passionais intenções, pedi que ela me deixasse. Antes de partir – ai, a vingança das mulheres feridas! –, ela atirou-me sobre a escrivaninha uma folha de papel na qual se encontrava escrito um texto de tua autoria, Uma Oração. Ao reconhecer aquelas palavras, um medo descomunal apoderou-se de mim. Temia que ela houvesse descoberto meu segredo: Eu, o pior dos cegos, aficionado por teus sóbrios escritos. Acreditava que, ao ler-te, restabelecer-se-iam a doçura e a alegria de existir que jamais experimentei. Devorei por anos teus livros – Elogio de la sombra, El oro de los tigres, O Aleph, Ficciones, Historia de la eternidad –   repetidamente. Passeei por teus contos, perdi-me na Biblioteca de Babel, à procura de uma sensibilidade estrangeira, que me fora subtraída desde o nascimento. Sei de milhares de pessoas que veem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias, dizes tu em Uma Oração. Sou uma destas pessoas, Borges. Sou uma delas, mas não quero ser. Anseio tornar-me tal qual os cegos, que tudo sabem acerca daquilo que não veem; e adivinham – por meio dos sabores, dos cheiros, da entonação das vozes, dos espinhos – o mundo inteiro. 

Certa vez, disseste que uma das primeiras cores que somem com a cegueira é o negro. Desaparecem as trevas e também os tons escarlates, restando apenas uma neblina luminosa. Ficaste cego e, tudo que passaste a enxergar desde então, foram luzes azuladas e cor-de-rosa. Deixaste de ver rostos e palavras e começaste a enxergar movimentos. Minha tragédia é ver e não enxergar. O teu milagre é enxergar e não ver. Não há nada aqui para ser visto, Borges. Nossa humanidade não permite amizade ou amor, estes apenas podem existir nos livros que povoaram tua vida desde a infância. 

O tempo passa mais rápido quando estamos de olhos fechados. Portanto, velho, morreste jovem. Talvez com aquela idade perfeita, em que Adão saltou do barro e Cristo foi imolado na cruz. Viveste como um príncipe feliz, enquanto passo eu os dias a assistir a putrefação de meu próprio retrato. Anda, lírico Tirésias, levanta-te de tua tumba e ensina-me a enxergar com a alma, como fizeste tu a vida inteira, incansável Diógenes.

 

Miguel Libro da Silva

Oftalmologista

 

15/07/2014, teça-feira

 

 

 

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