AVESSO

 

Não, não sou. Respondia ela quando a julgavam – nestas constrangedoras e ridículas manifestações de afeto que apenas os adultos conseguem simular – uma menina bonita. Não, não sou. Reclamava. O beicinho torcido, o cenho franzido como as saias que detestava vestir.

 

Não, não era. E ninguém entendia sua negativa, tão clara, tão franca. “Tadinha, acredita-se feia, a pobrezinha”, diziam tomados por uma candura oca, inútil, ao acariciar-lhe a cabeça tomada de raiva por tudo e por todos que se recusavam a enxergar o óbvio, a verdade que estava bem ali, nítida, diante do olhar míope de todos que a achavam uma bela garotinha – mas um tanto estranha, confessavam em segredo.

 

Sim. Tinha um rosto bonito, mas não era bonita. Bonitas são todas as meninas. Já meninos, os meninos são bem parecidos. Ela era um menino e ninguém enxergava. E que menino no mundo inteiro gostaria de ser chamado de bonitinha, de princesinha? Não, não sou. Quase gritava, ameaçando esmurrar as pernas daqueles que tentavam ganhar-lhe a confiança à custa de elogios vazios que a ofendiam, invertiam-lhe abruptamente a sexualidade com a qual ela tanto se identificava, que era sua assinatura no mundo. Apesar de muito jovem, ela sabia, sentia dentro de suas convicções tão íntimas de recém-chegada a este mundo quase por completo etiquetado, que ela não era ela. Não, não sou.

 

E não era. Ele não era uma menina. A falta de um acessório genital feio e desnecessário, a ausência de um penduricalho vulgar e incômodo no meio das pernas, não lhe parecia argumento plausível o suficiente para que o bombardeassem insistentemente com bonecas e fogõezinhos, com vestidos e livros de princesas. Ele queria uma ferida no joelho. Uma ferida grande, de casca grossa e boa de cutucar com a unha suja de terra. Queria ter os cabelos curtos, não suportava os cachos caídos sobre seus ombros que carregavam o peso enorme de forçosamente ser aquela que não era. Não, não sou.

 

Seu nome de batismo era Rafaela. Achava um bonito nome, mas aquela letra "a" encerrando a palavra que deveria defini-la, não passava de uma vogal equivocada, que contribua para toda a confusão que faziam acerca de quem realmente era. Rafael. Gostava assim, de ser chamado Rafael. Rafael era mais apropriado, não permitia os tão incômodos e rotineiros equívocos que tanto o chateavam.

 

No colégio riam dele, chamavam-no de sapatona. Aos oito anos de idade, não deveríamos ouvir coisas tão cruéis. Mas Rafael não entendia aquilo como agressão, tomava por engano. Para que alguém seja sapatona, é necessário partir-se da premissa de que este alguém se trata de um ser humano do sexo feminino. Mas Rafael não era uma menina. Não, não sou.

 

Também não recebia carinho de seus pais, que jamais lhe deram de presente uma bola, um caminhão de bombeiro. Jamais o levaram para a escola fantasiado de zorro. Sempre aquela vergonhosa roupinha de princesa, os mesmos ursinhos de pelúcia que só serviam para ser destroçados e queimados. Das bonecas, até gostava um pouco, pois, nas brincadeiras, sempre representava o pai amoroso e responsável, o homem da casa.

 

Hoje, Rafael está fazendo nove anos de idade e seus pais deram-lhe uma grande festa, com uma bela mesa que imita uma floresta, tendo no alto de uma colina de papel machê um lindo castelo de isopor. Rafael não quer abrir seus presentes, sabe que dentro destas caixas coloridas, destes pacotes embrulhados com papéis dourados e fitas de cetim, não há coisa alguma capaz de deixá-lo contente. A festa é inútil, pois trata-se do aniversário da outra, daquela que chamam Rafaela, a menina que pensam ser ele.

 

Envergonhado, vestido em uma fantasia de Gata Borralheira, Rafael enfia-se sob a mesa e põe-se a esmagar crânios de formigas com um palito de picolé. Enquanto as outras meninas são treinadas no jardim para se tornarem esposas servis e mães opressoras, Rafael brinca sozinho. Com os olhos vermelhos de raiva, repete incessantemente diante dos cadáveres das pequenas rafaelas decapitadas:

 

 

Não, não sou.

 

Emerson Braga

12/12/2014

 

Texto originalmente publicado no livro EXEMPLOS: AMORES, DESAFETOS E OUTROS DESPAUTÉRIOS ACERCA DE EROS, lançado pelo selo Scenarium Plural. 

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