ATRAVÉS DO ARCO

 

Sobreviveram à tempestade? Era o que a família Fortuna se perguntava em silêncio, envenenada por constrangedora agonia. Todos apenas esperavam, esperavam.

Mara e Miro saíram às escondidas a fim de resgatar a gata Sinhá que, desde o dia anterior, havia se embrenhado no mato. Inconsoláveis com o sumiço do estimado bichano, as crianças decidiram pela missão de resgate ao ouvir da boca do pai que Sinhá provavelmente havia sido devorada por um porco-do-mato.

― Miro é tão tímido, tão frágil.  Se pega uma pneumonia, há de morrer por essas matas sem que eu torne a beijar-lhe as faces tão pálidas ― lamentava dona Pepita Fortuna, mãe das crianças, abraçada ao marido.

― Não se avexe, senhora. Mara é esperta, conhece cada pé de urtiga dessas bandas. Ela há de retornar sã e salva a casa antes que Miro passe por alguma privação ― disse Dourado, primogênito dos Fortuna, constrangido por não ter cuidado dos irmãos menores.

         Em um desses pressentimentos maternais, dona Pepita girou a cabeça na direção da janela que dava para o quintal e avistou duas crianças que se aproximavam. Uma delas trazia em seus braços, viva e segura, uma enlameada gata Sinhá. Já a outra usava uma vara, talvez para proteger-se das feras.

― São eles! ― gemeu a mulher antes de correr na direção dos pequenos, seguida por um tropel de curiosos que havia passado a noite em vigília.

Antes de se atirar sobre as crianças e envolvê-las em um abraço de raiva e alívio, dona Pepita deteve-se diante delas, ressabiada. Sim, eram seus filhos. Coração de mãe não se engana sobre a própria descendência. Mas, de algum modo, também não eram Mara e Miro. Não eram.

Dona Pepita olhou ao redor e viu que todos os presentes partilhavam do mesmo espanto. Mara e Miro haviam mudado. Mas, como aquilo seria possível?

Dentro do vestidinho azul ainda resistiam as mesmas feições. O nariz atrevido e os olhos de quem vê o mundo por debaixo das pernas de um mágico. Mas a menina havia desaparecido. Mara agora era um menino. Como, um menino? Ora, um menino! E Miro? Miro também continuava lá, dentro da blusinha de flanela e do calção marrom de brim. Semblante assustado, queixo pontudo, boca fina e bem feita. Mas ele não era mais ele. Havia se transformado em uma menina.

― O que houve? O que se passou com vocês? Com quem estiveram na mata? O que lhes fizeram?

― Não vimos ninguém, mamãe. Só nós e a gata. Nós e Sinhá.

Assustada, dona Pepita temeu que todas as leis divinas, de repente, ruíssem. Tomou com violência o felino em seus braços e verificou clinicamente o sexo do apavorado animal.

― Esta ao menos continua como veio ao mundo. Mas, e quanto a esses dois? Fortuna, senhor, diga alguma coisa!

O que diria o homem? As crianças haviam saído de um modo e retornado de outro. Coisas fantásticas costumam acontecer após uma tempestade. Novas espécies de animais são descobertas, mulheres estéreis engravidam, sapos voam e pessoas mudam para sempre. A lógica com a qual todos estavam acostumados fora apresentada naquele dia com uma charada sem resposta. Sem resposta? Não. Aquele não era esse tipo de enigma.

         ― Passamos por debaixo de um arco-íris. Foi lindo, mamãe! Vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta brilhando no céu como estrelas coloridas ― falou Miro entusiasmado, enquanto suas palavras eram ditas por uma voz que não era a sua e saíam de um corpo que não era o seu.

― Estávamos perdidos, Dourado. E só encontramos o caminho de casa depois que passamos através do arco. O arco-íris nos salvou! ― comemorou o menino no qual Mara havia se tornado.

         Estava feito e sem remédio. Mara seria pelo resto da vida um menino. Miro jamais deixaria de ser uma menina.

Aos poucos, a pessoas se deram conta de que não havia problema algum em aceitá-los daquela forma. Ambos continuavam as mesmas crianças. Independente do que lhes havia acontecido, o que importava de verdade era que não estavam mais perdidos. Estavam vivos.

         ― Por que vocês dois parecem tão satisfeitos? Será que não percebem? Não veem? Foram trocados! Não são mais meus filhos! Não são! ― gritou dona Pepita como faria a louca que jamais fora, esquecida do amor incondicional que professava. ― Olhem para vocês! É errado... Não posso conviver com isso. Tragam-me o arco-íris aqui! Que essa maldita aquarela celeste devolva meus filhos! Eu quero Mara e Miro! Mara e Miro! A vocês dois, nem sequer sei como chamá-los.

         Após o surto materno, os caçulas da família Fortuna se encararam como se não entendessem as queixas de dona Pepita. Não sabiam do que ela falava, de que troca, de que mudança. Mara e Miro, mesmo antes do arco-íris, sempre foram daquela forma, daquele jeito. Mas, antes da tempestade, ninguém havia se dado ao trabalho de enxergá-los como realmente eram. Jamais haviam feito questão de percebê-los.

         De repente Sinhá disparou no meio das pessoas e pulou a janela para dentro de casa. Mara e Miro seguiram-na contentes, às gargalhadas. A gata ― atemorizada pelo alvoroço da curiosa multidão ― não entendia o porquê de tanto alarido por motivo tão tolo, tão besta.

Sinhá não era tonta. Gata escaldada.

 

Emerson Braga  

 

04/02/2016

Comments: 1
  • #1

    Roseli Pedroso (Thursday, 04 February 2016 13:22)

    Emerson, que adorável conto! Sempre um prazer te ler!